CRÓNICA
Ao passar por Lisboa rumo a mim
Era Fernão Lopes, o cronista, quem dizia de Lisboa uma cidade de “desvairadas gentes”, querendo dizer com isto que a capital portuguesa cumpria um destino saudável, o de ser de todos e de cada um, multicultural, atraente, cosmopolita, de feições internacionais – ao contrário de outras, apenas fechadas sobre as suas próprias sombras, cumprindo becos e medos de ruas escuras e desconfiadas. Lisboa que de outrora aos nossos dias foi ousando a absorção de novos valores, mais jovem, mais massiva e massificada, mais colorida, mais espetáculo e mais circuito cultural. Deixou de ser a cidade irremediável, adiada, presa em masmorras e desamor.
É confrangedor ouvir o coro dos desesperados que só veem a cidade com olhos raiados de miopia, ignorando como é vistosa, paradoxal entre o que nela é passado, nem sempre motivo de orgulho, e o que nela é presente e sobretudo emergente.
Lisboa é de uma estética urbana que poucas rivais encontra pelo mundo. Tradicional e moderna, tatuada e esburacada, milionária e pedinte, com a magnificência do Tejo como guardião. Não é a cidade que foi. Perdeu o ar tristonho, provinciano, rural, nem é o boneco de trapos a fingir-se dama de imperialismo ao gosto do Estado Novo. Dela já não partem vivos-mortos: nem soldados para a frente da Grande Guerra nem para as armadilhas coloniais. Também já não chegam ao cais os caixões de pinho com os soldados, meninos caídos em combate – alguns anónimos, todos injustiçados.
Há agora outra energia, com carimbos ecológicos, eletrónicos, espetaculares. E alguns dos transeuntes esquecem-se da frase mais carismática que usam enviesada: só neste país! É verdade. Só neste país recebemos visitantes que nos dizem: nem imaginam o que têm aqui!
É que eles vêm de sítios que não têm nada do que temos aqui. E o que aqui temos é, ante de mais, um povo de uma generosidade incomparável.
Gosto de desvairadas gentes. Que falam alto, tatuam a pele e a frontaria da casa, entre o deve e o haver a ver no que isto dá. Desvairadas gentes que exigem direitos e conhecem a força dos deveres.
Lisboa teve uma história triste – 400 anos de amargura, entre o século XVII e 1974, com as maiores adversidades, de guerra civil a terramoto, peste, fome e pé descalço e as barracas que o ditador achava que serviam perfeitamente, a gente sem comida, nem água, nem luz, nem alfabetização, bem melhor para moldar.
É mais fácil uma ditadura – de qualquer imbecil com umas armas a seu serviço se faz um ditador – do que uma terra de liberdade. E mesmo com as ameaças do presente, com os novos candidatos a ditador a mentirem pelas esquinas e os perigos invisíveis que cada vez mais nos ameaçam, esta é uma Lisboa de desvairadas gentes capazes de tudo e do melhor.
Sim, a liberdade é um território sagrado. Alexandre Honrado
[texto publicado originalmente no Jornal de Mafra, Notícias do Concelho de Mafra, edição de 2 de Setembro de 2020]
Ao ritmo da leitura | A propósito
É sempre motivo de congratulação qualquer sinal de vitalidade de instituições dedicadas à Cultura!
É o caso dos prémios nas diferentes áreas da Cultura, da Literatura às outras Artes e às Ciências, nacionais e internacionais. Como, agora, o da 33ª edição do Prémio Pessoa, com um júri reduzido pelo Covid 19, atribuído agora a Tiago Rodrigues (v. os 32 anteriores). Como os que a Associação Portuguesa de Escritores está a anunciar. Ou de concursos abertos, a decorrerem ou anunciados. Ou os mais transversais à cultura e numerosos da Sociedade Portuguesa de Autores, que celebram o Autor e os que os estudam e o divulgam. Ou os balanços e revisitações, como as que organiza Petar Petrov em O Romance Português Pós-25 de Abril. Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (2003-2014) (2005; 2ª ed. 2017) e Meridianos Lusófonos. Prémio Camões (2008-2016) (2018)
«Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa»
«Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa»[1]
Como se pode ver, o semi-heterónimo pessoano BERNARDO SOARESsó aparentemente mostra aquela espécie de patriotismo nacionalista por aquilo que diga respeito à Língua Portuguesa. Nem, nestas palavras, o seu patriotismo se apresenta enquadrado por um perfil geográfico e político, antes por uma substantividade linguística. Dito de outro modo, a consciência a que Bernardo Soares se atribui da Língua Portuguesa é uma consciência da materialidade da língua. No mesmo texto, afirma ainda que, para ele, as palavras são «corpos tocáveis […], sensualidades incorporadas»[2]. Por esta ótica se poderá, então, afirmar que a Língua Portuguesa emerge na sua consciência de poeta como uma realidade espiritual, é certo, mas também como entidade física, ‘tocável’, “vista e ouvida”[3].
Assim, FERNANDO PESSOA, ou pela voz deste seu outro eu, ou ortonimamente, acabou, afinal, por participar num diálogo com o que de mais substancial a Lusofonia compreende. Obviamente que não se encontra presente nas suas reflexões a totalidade do que, hoje, é abrangido por esse termo e conceito. No entanto, o modo como o fez conduz-nos a uma conceção de Língua que acaba por acentuar o plano espiritual, essencialista, da Língua Portuguesa. É, no fundo, e em última análise, a este ponto que as posições evocadas nos permitem conduzir; por um lado, por aquilo que deixam imediatamente transparecer; por outro, pela forma como os diversos testemunhos de Fernando Pessoa contribuem, neste contexto, para a afirmação, e confirmação, de uma noção: a que germina no princípio de existência de uma comunidade traçada pelo diapasão da unidade.
É certo que a política da Língua Portuguesa não se desvirtuaria enquanto manifestação identitária se somente por ela fluísse a atuação dos órgãos estatais. Logicamente que cabe às entidades governamentais, aos Conselhos de Ministros, aos Comités de Concertação Permanente, aos Secretariados Executivos, etc. etc., um papel de extrema importância, pelas virtualidades representativas que lhes cabem. Todavia, o périplo da Língua Portuguesa no mundo tem que ser impresso por todos os seus falantes — sem que haja uma valorização excessivamente negativa daquilo que (num outro contexto) Almada Negreiros chamou «núcleos colectivos, espécie de mundos parciais para idênticos»[4]. É necessário, isso sim, que entre os falantes da Língua Portuguesa haja aquela «consciência da unidade espiritual» de que Almada também falava[5]. Só através dessa consciencialização nos podemos permitir construir, reforçar e fazer perdurar a nossa «mística colectiva»[6]. Só então estaremos muito perto de uma vivência próxima daquela que foi pedida por ANTÓNIO FERREIRA, na Carta a Pêro d’Andrade Caminha. Nessa conhecida carta (Carta III do Livro I), onde faz a defesa da Língua Portuguesa, António Ferreira exorta:
«Floreça, fale, cante, ouça-se e viva / A portuguesa língua»[7].
Não falar, não cantar a Língua Portuguesa traduzir-se-ia em atirar palavras ao vento… Não ouvir, não viver a Língua Portuguesa traduzir-se-ia em defraudar tudo aquilo que escreveram os agentes linguísticos, culturais e literários, de cuja Comunidade todos nós também somos tributários e fazemos parte. É por isso que, em primeira e última instâncias, considero admissível aquela possibilidade enunciada por FERNANDO PESSOA:
«Não podemos fazer da língua portuguesa o privilégio da humanidade. Podemos, porém, convertê-la em metade de tal privilégio»[8].
Dionísio Vila Maior [texto publicado originalmente no Facebook)
[1] PESSOA, Fernando (1986). Obras de Fernando Pessoa. Introduções, organização, biobibliografia e notas de António Quadros. V.2. Porto: Lello & Irmão Editores, p. 573.
[2] Id.: 572.
[3] Id.: 573.
[4] NEGREIROS, José de Almada (1992). Obras Completas — Ensaios. Vol. V. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 100.
[5] Id.: 116.
[6] Id.: 117.
[7] FERREIRA, António (1973). Poemas Lusitanos. Notícia história e literária, seleção e anotações de F. Costa Marques. 2ª ed., Coimbra, Atlântida, p. 112.
[8] PESSOA, Fernando (1993). Pessoa Inédito. Coordenação de Teresa Rita Lopes. Lisboa, Livros Horizonte, p. 154.
MATAR – pelo menos as saudades (dos centros comerciais)
Jean Baudrillard é um nome que a poucos dirá alguma coisa e a esses poucos só a vergonha de não saberem mais sobre a sua figura leva a admitir que sabem de quem se trata. Era um estudioso da cultura, essa coisa estranha que não passará, afinal, de um somatório de usos e costumes humanos, para usarmos uma ideia de Voltaire, usos e costumes nem sempre abonatórios daquilo que somos, nem da forma como agimos e sobretudo distante do que nos seria benéfico se sentíssemos bem e para o bem comum.
Jean Baudrillard era francês e a figura mais completa do chamado pós-modernismo europeu; filósofo, sociólogo, sem a popularidade de muitos e com o extraordinário atrativo de ser um não alinhado, agindo à margem de sistemas de convenções, peixe graúdo do pensamento capaz de, contra corrente, chegar ao seu destino sem parar em margens intelectuais que lhe pedissem cedências e banalidades.
Quando se oferece aos alunos a possibilidade de inclui-lo nas suas leituras, muitos fazem o que é apanágio da cultura atual: deixam para um dia de calendário desconhecido o esforço de conhecê-lo e leem, na melhor e mais otimista das hipóteses, um resumo sugerido pelo motor de busca, para depois o deitar ao esquecimento. Mas quem andou pela cidade de Lisboa com atenção ou foi à praia da Fonte da Telha, talvez se recorde de um francês entusiasmado e muito culto que tinha, perdoem o trocadilho, o culto de Portugal – embora Portugal passasse por ele sem saber quem era, de onde vinha, o que podia ganhar em conhecê-lo. Por falar em cultura, era um agricultor de palavras e ideias e semeava-as com um rigor de camponês em terreno próprio, embora fosse, repita-se, um marginal entre os alinhados, e isso, obviamente, ditou a sua impopularidade. Isso e não ter um sistema rígido para aprisionar o seu vastíssimo pensamento.
Alguns eleitos, por cá, conheciam-no de França, como o filósofo português José Gil que reconheceu Braudillard como espectador atento das suas intervenções no Collège Internationale de Philosophie, em Paris, nos anos 80. Outros conheciam-no do Bairro Alto (ele morava em Alfama) ou das margens do nosso imenso e libertador, formoso mar (parafraseando, ou melhor ainda, adaptando a frase de Pasolini).
Baudrillard que afirmou que a guerra do Golfo nunca existiu e que foi uma bem orquestrada encenação dos meios audiovisuais, teria muito a dizer desta pandemia nestes nossos anos 20 que vivemos com a ameaça invisível de um inimigo fatal e inexplicado. É que não havia tema que não o interessasse, da política mundial ao Big Brother. Infelizmente deixou-nos, em março de 2007. Defendeu uma tese que intitulou O Sistema dos Objectos, onde discorre sobre a sociedade de consumo.
Tudo o que fazemos incorpora um significado social e Baudrillard põe-nos a nu quando nos descreve na nossa relação com o consumo, com essa simbologia negativa da aquisição que justifica uma das saudades provocadas pelo confinamento: temos saudades das grandes superfícies e dos centros comerciais, como de um parente que não abraçamos há alguns meses. Foi só por isto que Baudrillard me surgiu agora na memória, uma entre muitas, boas, recordações, evocando como se referia ao modelo universalista desses espaços (os mais dinâmicos centros culturais?) como a síntese de uma neo-cultura generalizada.
Somos movidos por lógicas imateriais e imaginárias. Temos até saudades daquilo que não podemos ter?
Baudrillard escreveu um livro com esse mesmo título – Sociedade de Consumo. E estamos lá todos, a ver as montras, idealizando vidas.
William James, o primeiro professor de psicologia dos Estados Unidos, disse que “o pensamento é o pensador”. Eu? Eu não digo mais nada. Alexandre Honrado
O Baile do Medo
(título retirado do poema ”O medo” de Carlos Drummond de Andrade, in A Rosa do Povo).
Amanhã, o que irá acontecer se alguém deixar de ter medo?
O que irá acontecer ao mar, se o mar deixar de ter medo?
Há um número considerável de perspectivas, a partir das quais o medo e o tempo se conjugam.
Um novo PEN Clube Português
O PEN Clube Português recuperou, com a direcção eleita em Fevereiro de 2019, a sua matriz. Integrado no PEN Internacional – «a maior e a mais importante organização mundial de escritores empenhada na defesa da liberdade de expressão, bem como de direitos e valores humanistas», como se lê na Carta fundadora –, propõe-se celebrar a criação literária dos seus membros, em intercâmbio com os 145 centros PEN e intervindo nos quatro comités da instituição: Mulheres Escritoras, Tradução e Direitos Linguísticos, Escritores para a Paz, Escritores na Prisão. (mais…)
Não há quem nos defenda (de nós)
Atento como era, o professor, historiador e filósofo, Michel Foucault teria publicado hoje as suas aulas no colégio de França, as de 1976, não com o título É Preciso Defender a Sociedade, como aliás o fez e com grande êxito, mas com uma atualização. É provável que intitulasse a reunião daqueles seus pensamentos sob um título novo e mais contemporâneo de todos nós: É preciso Defender a Sociedade de si mesma.
Já nessa altura, nos anos 70 do séc. XX., Foucault preocupava-se com aquilo a que chamava o bio-poder, força de poder exercida sobre a vida e os vivos, capaz de reprimir populações inteiras e negar-lhes a sua parcela de mundo e de futuro. (mais…)
Nos 23 anos da morte de David Mourão-Ferreira
David Mourão-Ferreira deixou expresso, no fragmento CVIII da segunda parte de , o seguinte desejo: «Gostaria de morrer de repente: / a meio de uma frase que nesse instante / estivesse a ler; ou a escrever.»
A terceira Parca – Atropos – a que tem por mister cortar o fio da vida, não atendeu o desejo do poeta, que lhe havia prestado a sua última homenagem no final da Obra Poética (1948- 1988) : “ Só comigo me encontro enquanto me concentro / nas ancas de Afrodite ou nos olhos das Parcas / Mas sei que sou assim desde há imenso tempo / mal fora iniciada a secreta viagem.” (mais…)
NA MORTE DE AGUSTINA BESSA-LUÍS
Agustina Bessa-Luís (15 de Outubro de 1922), que lembramos na sua jamais temida morte (3 de Junho de 2019), mostrou como as mulheres da região Norte lutam contra os valores patriarcais, se define a arrogância de burgueses endinheirados, enquanto reflecte sobre o poder (O comum dos mortais, 1998) e não evita um olhar conservador sobre a emancipação feminina (Jóia de família, 2001). Gerações de estudantes conheceram-na em A Sibila (1954), mas, entre as dezenas de títulos desde 1948, salientaríamos O mosteiro (1980), em que se coroa a sua «agressividade de imaginação», incomum no meio português. (mais…)
Nada se compara com o meu cantinho
Ganhei o (estranho) hábito de me sentar em cantinhos bem iluminados. É fundamental que sejam bem iluminados, esses cantinhos, e a razão para essa exigência é muito simples: regra geral faço-me acompanhar de livros, artigos de revistas, fotocópias e apesar de ler bem sem óculos, a luz devida tem de acompanhar-nos.
A esse hábito acresce a sua motivação: é em cantinhos iluminados que as ideias se revelam e da escuridão – zona habitada pela profundidade – pode muito bem nascer a luz, como a sabedoria popular há muito dita.
Há tanta ideia por pensar (quinta parte)
Uma pequena homenagem a Vergílio Ferreira
Volte-se então a essa simplicidade que opõe o mal ao bem. Os deuses aos demoníacos, os indiferentes aos imbecis que são piores do que os indiferentes. Ambos são de grande utilidade. Dão-nos a sentir, por vezes ao espelho, que estamos mais perto de nós do que queremos.
Os deuses precisam desesperadamente de nós.
Há tanta ideia por pensar (quarta parte)
Uma pequena homenagem a Vergílio Ferreira
A arte pretendeu dar-nos um lado cromático e volumétrico, sensual do pensamento. Por vezes é a vida tal como a vida era ou pensava ser. Outras vezes, distorção. Mais tarde, a exaltação da fealdade. Hoje, a pele e as paredes são telas. A arte fica nelas. Alguns de nós ainda reparam nisso.