Out 12, 2019
Gil Vicente, Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro e Auto da Lusitânia
Primeira peça em 1502 (Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro), última em 1536 (Floresta de enganos), Gil Vicente (n. na década de 1460; m. segunda metade da década de 1530) é consensualmente considerado o pai do teatro moderno português, não no sentido de seu radical fundador, mas no de elevação das antigas representações religiosas e populares medievais a um patamar de sólida qualidade estética, fortemente inovadora face às conceções dramatúrgicas anteriores.
Centro do volume, com dois autos, Gil Vicente, considerado o pai do teatro português moderno, sintetiza, nas peças selecionadas, a totalidade da sua obra. Teatro de devoção, moralista, mas também de denúncia social, teatro popular representado na corte, ou teatro cortesão com personagens populares, teatro sério com elementos satíricos, ou teatro de natureza crítica, teatro firmado em tipos sociais, mas com labirintos de enredos psicológicos, teatro alegórico, porém dotado de personagens nomeadas individualmente, a obra de Gil Vicente opera um genuíno retrato condensado da sociedade portuguesa dos primeiros 30 a 40 anos do século XVI.
Todos na sua obra têm lugar: cortesãos e corregedores, escudeiros e sapateiros, damas nobres e regateiras, viúvas de marinheiro da Índia e alcoviteiras, meninas urbanas e de feira rural e meninas casadoiras, cavaleiros e judeus… E cada personagem não vive por si, mas segundo o seu lugar no todo da ação e do desfecho. É já teatro, de texto estruturado e ação organizada em função de um final dramatúrgico, dotado, em si, de fins estéticos, que se podem ou não confundir com fins religiosos. É teatro, não momo ou arremedilho medievais, não revivescência erudita do teatro greco-latino, mas uma forma de teatro muito singular que, culturalmente, emergirá com Gil Vicente e marcará definitivamente este género literário em Portugal, reflexo da mentalidade otimista manuelina, que Sá de Miranda criticará.
Henrique da Mota, Lamentação do Clérigo, Farsa do Alfaiate, Lamentação da Mula, Processo de Vasco Abul
Uma das vertentes matriciais do teatro português na primeira metade do século XVI encontra-se na participação de Henrique da Mota no Cancioneiro geral de Garcia de Resende, publicado em 1516.
Contemporâneo de Gil Vicente, mas estética e dramaturgicamente antecedente, Henrique da Mota opera a passagem entre formas de representação medieval (os «mistérios», os «momos», as farsas, as «moralidades») e o teatro moderno. Poeta, juiz dos órfãos em Óbidos, provavelmente nascido no Bombarral na década de 1470, terá morrido após 1545. As suas composições poéticas apresentam uma dialética tensional para-teatral, com encadeamento dramático em torno de personagens e os versos em forma de diálogo, como é o caso do Processo de Vasco Abul, Pranto do Clérigo – história do desaparecimento de uma pipa de vinho –, Lamentação da Mula e Farsa do Alfaiate, este último texto o que mais se aproxima da estrutura de uma peça de teatro. Com efeito, contendo indícios de representação teatral, estes textos não são ainda, ou não parecem ser, verdadeiramente, textos para teatro. Daí tanto a necessidade da sua problematização estética como de operar a sua comparação com a obra dos autores coevos.
Francisco Sá de Miranda, Os estrangeiros
No prólogo de Os estrangeiros, Sá de Miranda critica os autores que substituíram a designação de «comédia» por «auto». Com efeito, toda a obra dramatúrgica de Sá de Miranda vive em profundo contraste com a de Gil Vicente, que conquistara a corte com os seus autos de natureza popular. Sá de Miranda traz da sua viagem a Itália o gosto erudito e clássico da Europa culta, que lê e representa Plauto e Terêncio, não raro em latim, como o faziam os professores humanistas da Universidade de Coimbra. Gil Vicente vive inflamado por essa aura manuelina de conquista do mundo; Sá de Miranda convive com o melancólico D. João III – não era já o mesmo império, D. Manuel ergue-o, D. João III assiste ao declínio deste. Sá de Miranda é o poeta da acelerada dissolução de costumes sociais trazida pela riqueza quinhentista proveniente da «canela», dos «pardaus» (moeda corrente na Índia) e pela atração mirífica de «Cambraia» e «Narsinga». Os estrangeiros, primeira comédia greco-latina escrita em português, traz, assim, para a cultura portuguesa, o brilho do novo, acompanhando a nova poesia e o novo estilo do autor.
Afonso Álvares, Auto de santo António e Auto de Santiago
Afonso Álvares evidencia-se como o representante de uma corrente de hagiografia teatral, quase inexistente em Gil Vicente, que será praticada com alguma abundância por autores menores. Autos representados no convés das naus e caravelas, como o Auto de Santiago e o Auto de santo António, exprimem o registo social da crença do homem médio do século XVI, dividido entre o medo dos mundos descobertos, porventura habitados por monstros, a esperança de atingir uma prosperidade que, lutando, prometendo aos santos do Céu, não consegue alcançar, e a angústia de familiares presos entre a mourama. Teatro religioso dirigido a mentes devotas, por vezes supersticiosas, crédulas sobre o poder de um mundo de milagres e portentos que envolve o quotidiano do português.
Baltasar Dias, Tragédia do marquês de Mântua
Deste poeta madeirense, cego, pobre, vendedor de «folhas de cordel», Baltasar Dias, desconhecem-se as datas de nascimento e morte. Sabe-se, apenas, que em 1537 lhe foi concedido o privilégio real da impressão e venda em exclusividade da sua obra, o que pressupõe que as suas peças teriam sido vendidas anteriormente em contrafação. Da sua lavra, são conhecidas Obras da famosa história do príncipe Claudiano, Auto de santa Catarina, Auto de santo Aleixo, A tragédia do marquês de Mântua, Auto do nascimento, História da imperatriz Porcina, Conselhos para bem casar e Auto da malícia das mulheres.
Como sintetiza Alberto Figueira Gomes, o mais eminente estudioso da obra de Baltasar Dias, «as grandes figuras do seu teatro defendem […] que o objectivo da caminhada humana é saber ganhar o céu pela vereda dos espinhos» (Poesia e dramaturgia populares no século XVI – Baltasar Dias, Lisboa, ICALP, 1983, p. 49).
Perpetuação de temas vinculados aos romances medievais no coração do Renascimento humanista, a Tragédia do marquês de Mântua, bem como outras obras de Baltasar Dias, ressuscita em forma de teatro, no século XVI, a matriz medieval do maravilhoso ínsito nas lendas populares sobre a vida heroica dos cavaleiros e das damas. Neste caso, haverá verdadeira justiça quando o juiz é o pai e o réu, com prova evidente do seu ato maldoso, o filho? Auto encenado nas caravelas que demandavam a África, esta peça popularizou-se em São Tomé, integrando a sua cultura nacional.
António Ribeiro Chiado, Auto das regateiras
Frade franciscano nascido em Évora na década de 1520, faleceu em Lisboa em 1591. Abandonou a ordem religiosa, mas teria conservado o hábito castanho desta, vivendo na Lisboa cosmopolita dos Descobrimentos, que as suas peças simbolizam do ponto de vista popular, uma cidade ligeira nos costumes, boémia e, de certo modo, aventureira.
A vigorosa polémica entre António Ribeiro Chiado e Afonso Álvares, outro dramaturgo, deve-se justamente à conceção e à prática de dois tipos diferentes de teatro, já que este autor celebrava sobretudo peças de carácter hagiográfico, enquanto Chiado escrevia sobre costumes populares e práticas sociais por vezes não virtuosas.
Habitante e personagem famoso na Lisboa dos Descobrimentos (é citado por Luís de Camões no Auto de el-rei Seleuco e por Jorge Ferreira de Vasconcelos em Aulegrafia), Chiado é autor de Prática de oito figuras, Auto das regateiras, Prática dos compadres e Auto da natural invenção, bem como de Auto de Gonçalo Chumbão (perdido). São, sobretudo, «conversas» ou «práticas» encadeadas entre personagens que refletem a vida e o quotidiano populares, sem tipicismos sociais, enfatizando aspetos psicológicos. Como Cleonice Berardinelli e Ronaldo Menegaz enfatizam, «as personagens dos autos e práticas [de Chiado] são de classe média [urbana] mais ou menos baixa. Sua fala é predominantemente popular, com recurso a provérbios e expressões feitas…» (Teatro de António Ribeiro Chiado, Porto, Lello & Irmãos, 1949, p. 18).
Uma mãe ambiciona casar a filha; o filho de Pero Vaz é o candidato num casamento arranjado pelos pais. Entre a ambição e a realização, o Auto das Regateiras exibe a vida comum nos bairros populares de Lisboa, as criadas negras, as comadres, os interesses pessoais dos moradores, ora mesquinhos, ora dadivosos. Como tipos sociais, algumas personagens nem nome têm, são, alegoricamente, a Velha, a Negra, a Comadre, o Parvo… São, assim, habitados de vida e costume os autos do boémio ex-frade António Ribeiro, conhecido popularmente pelo «Chiado».
Luís de Camões, Filodemo
Filodemo, representado em Goa em 1555, desdobra-se, culturalmente falando, como toda a obra teatral de Luís de Camões, entre a tradição dos autos de Gil Vicente e a forma ou estrutura clássica das comédias de Sá de Miranda. Neste sentido, Filodemo remete para a tradição vicentina (inclusivamente com uma personagem medievalizante como o Bobo), abordando contudo o tema clássico do amor segundo a forma (5 atos) clássica do teatro greco-latino.
António Ferreira, Castro
Nascido e falecido em Lisboa (1528-1569), António Ferreira sofreu a influência do humanismo europeu dos «mestres bordaleses» em Coimbra, cidade onde estudou e se licenciou em direito canónico, sobretudo do seu professor e amigo Diogo Teive (preso pela Inquisição). Neste sentido, até pela amizade com Sá de Miranda, a sua obra lírica reflete em grande medida a nova escola italiana e latina de poesia.
Uma tragédia, Castro, sobre a vida e a morte de Inês de Castro, e duas comédias, a Comédia de Fanchono ou de Bristo (1522) e a Comédia do Cioso (1552/56), ambas escritas em Coimbra, constituem a totalidade da sua obra dramatúrgica.
A Castro (5 atos, 8 personagens e coro) foi concebida segundo o modelo latino das tragédias de Séneca e é justamente considerada a primeira grande tragédia escrita em língua portuguesa, ainda que o tema dos amores de Pedro e Inês já tivesse sido inscrito poeticamente no Cancioneiro geral de Garcia de Resende.
Segundo a historiadora da literatura Maria da Nazaré Castro Soares, «a Castro […] apresenta o conflito entre o Amor e a Razão de Estado» (Teatro Clássico no Século XVI – a «Castro» de António Ferreira. Fontes. Originalidade, Coimbra, Almedina, 1996, p. 15). A razão de Estado, transposta para a peça, reflete politicamente o ambiente cortesão do reinado de D. João III, ora por via de reflexões laterais, ora centrais, como as referentes «ao problema da liberdade individual e suas limitações no espaço social e político, a diversidade de interpretações que o homem dá dos erros e da justiça, a temática do bom rei e do tirano…» (pp. 15/16).
O nosso grande dramaturgo humanista, António Ferreira é, em conjunto com Sá de Miranda, o autor que, não deixando de privilegiar a doutrina cristã, fundamento religioso da nacionalidade, valoriza igualmente o conjunto de valores e virtudes morais e estéticos legados pela Antiguidade greco-romana.
Jorge Ferreira de Vasconcelos, Comédia Ulysippo
Profundamente humanista, Jorge Ferreira de Vasconcelos, em Comédia Ulysippo, coloca nas mãos do amor e da moralidade (inclusive nos valores morais religiosos) a salvação de Lisboa, enriquecida pelos Descobrimentos e habitada por uma burguesia interesseira, uma aristocracia cortesã e uma população pobre ávida de ascensão social desprezadora dos valores humanistas e culturais.
António Prestes, Auto dos dois irmãos
Perdido o ideal cavaleiresco do Oriente, os autos de António Prestes, continuador do teatro de Gil Vicente, retratam a nova burguesia pós-imperial, aclimatada pelas riquezas do império, usando de uma linguagem menos popular mas também menos medievalizante. O embrutecimento das personagens representativas desta burguesia da segunda metade do século XVI não lhes permite enfatizar temas como o amor, nem usar de lirismo nos seus sonhos e ambições, vertentes italianizantes do teatro e da poesia, como o autor evidencia no prólogo do Auto dos dois irmãos.
Out 12, 2019
Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de Situ Orbis
Esmeraldo de Situ Orbis é a primeira descrição sistemática da costa ocidental africana escrita por um português, incluindo testemunhos de contactos com as populações africanas. Redigida no início do século XVI, esta obra descreve as principais zonas de comércio da orla costeira, explica a evolução do comércio com os africanos ao longo do século XV e mostra-nos o modo como os navegadores portugueses percecionavam o mundo e como admitiam o maravilhoso. É neste texto que Duarte Pacheco Pereira afirma que «a experiência é a madre de todas coisas» –, mas, como a experiência o habituara a ver coisas incríveis, o autor continuava a acreditar em hipóteses fantásticas como a existência de homens com cara de cão ou cobras com um quarto de légua de comprimento.
Duarte Nunes de Leão, Descrição do reino de Portugal
Em 1610, Gil Nunes do Leão publica a Descrição do reino de Portugal, referindo que a obra, editada em 1610, corresponde na sua forma geral e conteúdo, ao que o tio deixara, quando a acabou de compor, no ano de 1599, estando recolhido em Alverca, por causa da peste, pese embora as referências a datas posteriores (1601) feitas no seu interior e que apontam para acrescentos do autor. Existem apenas três edições da Descrição do reino de Portugal de Duarte Nunes do Leão. A de 1610, impressa em Lisboa por Jorge Rodriguez e dedicada a D. Diogo da Sylva, duque de Francavilla e conde de Salinas e Rivadeo, e a de 1785, realizada em Lisboa, na oficina de Simão Thaddeo Ferreira e dedicada a D. Francisco Rafael de Castro, principal da Igreja de Lisboa, e a de 2002, da responsabilidade de um grupo de investigadores do Centro de História da Universidade de Lisboa. Este é um texto pioneiro pelo carácter multiforme, de grande riqueza nos campos geográfico, das mentalidades e da história, conjugando ainda a corografia, a economia, a administração pública, a genealogia e a hagiografia.
José Bonifácio de Andrade e Silva, Memória sobre a necessidade e utilidade do plantio de novos bosques em Portugal
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), naturalista e estadista, poeta e soldado, cientista e humanista, diplomata e pensador, companheiro de Humboldt e Lavoisier, aluno de Gottlieb Werner e Alessandro Volta, cosmopolita e «Patriarca da Independência» do Brasil, não foi apenas uma figura ímpar do mundo intelectual luso-brasileiro. Dele se poderá dizer, sem receio de errar, que encarnou de modo genial, na sua constelação heroica e esforçada de talentos e interesses, o perfil pluralista de um verdadeiro homem das Luzes, amadurecido já na forja política, científica e tecnológica da Modernidade.
Na sua obra Memória sobre a necessidade e utilidades do plantio de novos bosques em Portugal, datada de 1815, apresentada à Academia Real das Ciências de Lisboa, Andrada e Silva alertou para a necessidade de uma ousada política de fomento de bosques e florestas no território continental português, de forma a evitar a repetição das situações de desertificação provocadas pela incúria humana em outros lugares e momentos da história, como foram os casos da Síria, Fenícia, Palestina e Chipre. E, ao fazê-lo, através da sua rigorosa e original compreensão das interações mútuas entre as leis físicas e o agir intrusivo do homem sobre a «economia geral da natureza», Andrada e Silva antecipou em muitas décadas o próprio conceito de ecologia, assim como a complexa dinâmica da crise global do ambiente, que é a maior ameaça à sobrevivência da civilização humana neste tormentoso século XXI.

Out 12, 2019
D. Duarte, Leal conselheiro
D, Duarte (1391-1438), 11.º rei de Portugal (1433-1438), filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, foi responsável, como soberano, pela promulgação da Leal Mental (1434) e pelo mais significativo avanço do texto legal que viria a ficar conhecido como Ordenações Afonsinas. No seu reinado ocorreu ainda o desastre de Tânger (1437), ao mesmo tempo que os navegadores portugueses prosseguiam o avanço na costa ocidental africana, tendo sido relevante a ultrapassagem do Cabo Bojador (1434).
D. Duarte foi igualmente autor de diversas obras, entre as quais Leal conselheiro. Redigido por volta de 1438, levado para fora de Portugal por sua viúva, a rainha D. Leonor de Aragão, manteve-se inédito até meados do século XIX, quando foi localizado na Biblioteca Nacional de Paris. Já no século XX, conheceu outras edições. Num texto que o próprio autor classificou como um ABC da lealdade, são abordados, em 103 capítulos, temas como pecados, vícios, virtudes e sentimentos individuais, numa linha dos chamados espelhos de príncipes. A originalidade do Leal conselheiro reside na forma como expõe as vivências individuais do autor.
Frei António de Beja, Breve doutrina e ensinança de príncipes
Frei António de Beja (nascido cerca de 1493 e falecido em data incerta), capelão da corte, professou posteriormente na ordem de São Jerónimo. Foi autor de Contra o juízo dos astrólogos (1523) e da Breve doutrina e ensinança de príncipes (1525). Nesta, dedicada a D. João III, e com claras influências do humanismo de Picco della Mirandola, o autor considerou que o príncipe, à semelhança de Cristo, deveria ter três grandes virtudes – sabedoria, justiça e prudência. Trata-se de uma de muitas obras de teoria política, na linha das de Álvaro Pais, Diogo Lopes Rebelo e Lourenço de Cáceres.
João de Barros, Diálogo de preceitos morais com prática deles em modo de jogo
O Diálogo de preceitos morais com prática deles em modo de jogo (1540) de João de Barros. Embora não se trate de um tratado estritamente pedagógico, este opúsculo, em forma de diálogo, à semelhança dos diálogos de Platão e Cícero, pretende contribuir, de forma lúdica, para a educação dos filhos do autor renascentista e humanista, através dos chamados «preceitos morais». Além de Platão e Aristóteles, o tebano Cebes, também discípulo de Sócrates, como Platão e personagem interlocutora no seu Fédon, foi, segundo Diógenes Laércio, autor de três diálogos: o Frínico, o Símia e a Tábua da vida humana. Perdidos os dois primeiros, resta-nos o último, que grande importância representou para os humanistas europeus, entre os quais João de Barros, que nele se inspirou para escrever este opúsculo pedagógico-moral e lúdico. O Diálogo com dois filhos seus sobre preceitos morais em modo de jogo insere-se na vertente pedagógico-didática das preocupações humanistas de João de Barros, de que fazem parte a Gramática da língua portuguesa com os mandamentos da santa madre Igreja, também conhecida por Cartinha, ou Cartilha (1539), o Diálogo da viciosa vergonha (1540), o Diálogo em louvor da nossa linguagem e a Ropicapnefma. A representação alegórica das virtudes morais em árvore inspira-se na apresentação triádica de Aristóteles, na sua Ética a Eudemo, reduzindo o escritor português as catorze virtudes a doze, sem seguir a mesma ordem.

Out 12, 2019
D. Pedro, Carta de Bruges
A Carta de Bruges, carta do Infante D. Pedro, duque de Coimbra, enviada de Bruges, na Flandres, ao irmão, D. Duarte, data muito provavelmente de 1426. É um documento notável que, no mesmo olhar, funde a descoberta do que há de exemplar nas sete partidas do mundo europeu por onde viaja com a revisão prudente da experiência vivida na corte e no reino de onde partiu. Nesse olhar, o saber do que existe lá fora desafia e quer reformar práticas instituídas dentro da sociedade a que o infante pertence e de que só temporariamente se encontra afastado. Como texto de «avisamento» de elevado sentido ético e político, está nele patente o compromisso de promover a construção de auspicioso futuro para o país. Ao aprender com a experiência dos reinos da Europa, o infante D. Pedro pretende motivar o irmão para introduzir no reino uma arte de governar que o torne mais europeu. Décadas mais tarde, há de ser Portugal, país dos Descobrimentos, a revelar aos reinos da Europa, a existência de novos mundos e de culturas ignotas.
Gomes Eanes de Zurara, Crónica de Guiné
A Crónica da Guiné é o primeiro texto sobre os Descobrimentos, escrito ainda em vida do Infante D. Henrique. Narra os acontecimentos entre 1422 e 1448, sendo o cronista contemporâneo dos factos descritos. Sobressai a figura do infante D. Henrique e o seu papel decisivo para o início da exploração oceânica, para a organização das navegações e para o desenvolvimento dos negócios; a crónica mostra-nos ainda os protagonistas, a sua origem social e geográfica, bem como a sua mentalidade cavaleiresca. Zurara mostra também como todos pressentiram de imediato o carácter revolucionário das Descobertas, o que nos é testemunhado pelo uso repetido da palavra «nunca» e pelas referências ao exótico. «
Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia
Um dos companheiros de Vasco da Gama, presumivelmente Álvaro Velho, deixou-nos um relato da viagem da descoberta do caminho marítimo para a Índia que constitui o Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia. A narrativa termina quando a armada está próximo da Guiné, à volta, e não foi retocada. Assim, o texto é, sem dúvida, um excelente testemunho das peripécias da viagem e também das expectativas de Vasco da Gama e dos seus homens. Através deste diário, assistimos ao primeiro contacto direto entre europeus e indianos após muitos séculos de afastamento.
Pêro Vaz de Caminha, Carta do achamento do Brasil
O escrivão de Pedro Álvares Cabral registou num texto admirável – Carta do achamento do Brasil – o primeiro desembarque oficial dos portugueses na América do Sul e deixa-nos o primeiro registo de um encontro entre os europeus e os indígenas. É o primeiro texto sobre o Brasil. O homem renascentista maravilha-se com a aparente inocência dos índios e escreve um texto que assume a alteridade – os portugueses acabavam de chegar a um mundo onde nem as regras específicas da Cristandade, nem as mais gerais do mundo euro-asiático eram aplicáveis.

Out 12, 2019
Horto do Esposo
A proporcionar um vívido panorama da espiritualidade em que se forjara o carácter do infante, propõe-se o chamado Horto do Esposo, escrito entre 1383 e 1417. Coube a Mário Martins o mérito de desmontar a «lenda literária» da tradução deste que foi, na realidade, o nosso protótipo em vernáculo de tratado de espiritualidade. Inscrevendo-se ainda no género da recolha e compilação de exempla em função parenética, na sua ambiguidade ou transição entre manual de oratória sagrada e leitura espiritual individual, o autor, anónimo alcobacence contemporâneo de Fernão Lopes (c. 1380- c. 1460), marca um momento fundacional da literatura portuguesa.
Vida do infante D. Fernando
A Vida do infante D. Fernando, de seu título completo, Tratado da vida e feitos do muito virtuoso senhor infante D. Fernando, foi redigido por frei João Álvares (séc. XV-c. 1490), seu secretário, que testemunhou presencialmente todos os factos narrados e com ele partilhou o cativeiro em Fez. Esta crónica biográfica do Infante Santo foi encomendada pelo Infante D. Henrique, protetor de frei João Álvares após o resgate deste. A obra relata a vida e os feitos do Infante Santo, exalta as qualidades morais e as virtudes do biografado e narra a expedição a Tânger, bem como os eventos que se lhe seguiram. Lido a par do seu congénere latino, Martytium et gesta, representa os primeiros passos de uma literatura hagiográfica em vernáculo e de raiz inteiramente portuguesa.
João de Barros, Ropicapnefma
Intitulada com «desconchavado» neohelenismo, fruto de uma «pouco auspiciosa incursão do autor no domínio dos compostos gregos», a Ropicapnefma (1532) do novelista, gramático, pedagogo e moralista, João de Barros (c. 1490-1570), que é mais conhecido por ser o historiador das Décadas da Ásia, cujas fontes possuía na Casa da Índia, de que foi tesoureiro e feitor (assim como foi tesoureiro das casas da Mina e Ceuta), esperou mais de quatro séculos por uma edição moderna (1952-1955), quando, segundo Marcel Bataillon, é «o mais original texto de prosa filosófica impresso em Portugal no séc. XVI». A representação alegórica das virtudes morais em árvore inspira-se na apresentação triádica de Aristóteles, na sua Ética a Eudemo, reduzindo o escritor português as 14 virtudes a 12, sem seguir a mesma ordem. Em colóquio de acentos erasmianos dialogado pela Vontade, Entendimento, Tempo e Razão, esta última examina a mercadoria espiritual ou vícios daqueles, em trânsito para a Morte. Se a ortodoxa Razão conclui pela imortalidade da alma (negada pelo averroísmo paduano) e prémios e castigos no Além, a crítica social e linguagem mordaz próximas de um certo Gil Vicente podem explicar a inclusão desta obra no Index de 1581. Seguimos a edição fac-similada da Biblioteca Nacional de Portugal (1981), que reproduz a editio princeps.
João de Barros, Espelho de Casados
O Espelho de Casados, do homónimo João de Barros (1522 – 1553) – jurista e «cidadão da Cidade do Porto», que não deve ser confundido com o seu contemporâneo. O João de Barros portuense publicou em 1540 um livrinho intitulado Espelho de casados em o qual se disputa copiosamente quão excelente proveitoso e necessário seja o casamento e se metem muitas sentenças, avisos e doutrinas e dúvidas necessárias e finalmente os requisitos que há de ter o casamento para ser em perfeição e serviço de Deus. Este Espelho de casados reproduz amiúde textos estrangeiros, mas não deixa de ser obra pioneira no nosso país uma vez que integra dados originais, tanto nas conceções como nas práticas. Foi a primeira vez que em português se produziu um discurso sobre o casamento, as funções de marido e mulher e o seu relacionamento. O interesse do livro reside também na data em que surgiu, quando se conheciam os debates de humanistas católicos e protestantes sobre o casamento e estando ainda por erigir o dogmatismo católico pós-tridentino. Registe-se, por fim, que terá sido a primeira obra a ser impressa no Porto.