António Ferreira
ANTONIO FERREIRA (1.º), Doutor em Direito Civil, e Lente na Univ. de Coimbra, Desembargador da Casa da Supplicação, Fidalgo da Casa Real etc. – Alguns erradamente o julgaram natural da cidade do Porto; porém elle proprio nos declara na carta 10.ª do livro I dos seus Poemas que nascera em Lisboa. Morreu da peste que assolou esta capital em 1569, quando contava apenas 41 annos d’edade por haver nascido no de 1528. – Para a sua biographia veja‑se por mais ampla e correcta a Vida que lhe escreveu o professor Pedro José da Fonseca, e sahiu com a segunda edição dos seus Poemas, de que abaixo faço menção. – E.
686) (C) Poemas Lusitanos do Doutor Antonio Ferreira, dedicados por seu filho Miguel Leite Ferreira ao principe D. Filippe nosso senhor. Lisboa, por Pedro Craesbeeck 1598. 4.º de IV‑240 folhas numeradas só na frente.
Os exemplares d’esta edição sahiram uns mais, outros menos limpos de erros, como consta da declaração que em alguns se encontra, juntamente com a taboa d’erratas logo no principio do volume. Diz assim: «Em muitos volumes se não verão a mór parte d’estes erros que se atalharam no decurso da impressão. Já se vê que são mais estimaveis aquelles‑exemplares em que menos erros se encontram.
Cumpre advertir que sendo estes poemas publicados vinte e nove annos depois da morte do auctor, proveiu talvez d’ahi o sahirem alguns versos alterados por infidelidade das copias, risco a que estão sujeitas todas as obras, a cujas impressões não assistem os proprios auctores. Ainda mais: parece que o exemplar que serviu de original para esta edição posthuma deixa alguma desconfiança de que n’elle se introduziriam algumas composições alheias, taes como os sonetos XXXIV e XXXV do livro 2.º, postoque o editor diga que seu pae os fizera na linguagem que em Portugal se usava no tempo d’elrei D. Diniz, e que se divulgaram em nome do infante D. Affonso, filho primogenito d’aquelle rei. – Mas Faria e Sousa, que devemos suppor bem informado, e que nenhum interesse tinha em occultar a verdade, quer na sua Fonte de Aganippe. Parte I, Discurso de los sonetos, que elles fossem verdadeiramente compostos pelo infante D. Pedro, filho do referido rei D. Diniz.
Na Bibl. Lusit. diz Barbosa, por inadvertencia, «que a segunda parte dos poemas se não imprimira.» Isto é inexacto, como se conhece pelo exame do volume.
Os exemplares d’esta edição de todas a mais estimada, são tidos em conta de raros, e o seu preço usual é de 3:200 réis, quando bem conservados. Entretanto, de alguns sei, vendidos por preços mais inferiores.
Estes Poemas comprehendem a tragedia Castro, porém não as comedias de Bristo e do Cioso, as quaes só sahiram á luz (pela prirmeira vez, ao que parece) juntamente com as de Sá de Miranda, intituladas dos Vilhalpandos e dos Estrangeiros por diligencia do impressor Antonio Alvares, que as dedicou n’essa edição a Gaspar de Faria Severim, em reconhecimento de ser elle que de sua livraria lhe fornecera os originaes que serviram para a impressão. O titulo com que então se publicaram é como segue:
687) (C) Comedias famosas portuguezas dos Doutores Francisco de Sá de Miranda e Antonio Ferreira Lisboa, por Antonio Alvares 1622. 4.º de 4.º‑154 folhas numeradas pela frente. – Poucos exemplares apparecem d’esta edição. Sei de um vendido por 1:200 réis. Passados 173 annos depois da primeira edição dos Poemas se fez a segunda, com o titulo seguinte:
(C) Poemas Lusitanos do Doutor Antonio Ferreira: Segunda impressão emendada e accrescentada com a vida e comedias do mesmo poeta. Lisboa, na Regia Off. Typ. 1771. 8.º 2 tomos. – Foi feita a custa dos livreiros DuBeux, e dirigida por Pedro José da Fonseca, postoque o nome d’este ahi não apparece em parte alguma mencionado. D’elle é tambem a vida do poeta, posta ao principio do primeiro tomo.
Apesar da diligencia e esmero que este benemerito professor empregou para que a reimpressão sahisse limpa de erros, escaparam‑lhe todavia descuidos e incorrecções, que deturpando o texto original, deram causa a novos enganos, e alguns bem notaveis. Apontar‑se‑ha como exemplo, na ecloga primeira, estancia 6.ª (a pag. 148 do tomo I) o vocabulo postura, que o corrector Fonseca ahi introduziu em logar de pastura, que se lia e ainda lê na edição antiga. E o peor é que d’esta supposta emenda e verdadeiro erro tirou aso o outro professor Antonio das Neves Pereira, para se illudir ao ponto de inculcar esse erro como uma metaphora proprissima pela analoyia da postura do rosto, ou feição, com postura da terra, monte, etc. (V. o tomo V pag. 29 das Mem. de Litt. da Acad. das Sciencias.) E a vista d’estas, e de outras similhantes, fiai‑vos la nos commentadores!
Taes faltas e outras muitas que se notam commummente nas reimpressões modernas de obras antigas, justificam assás (digamol‑o de passagem) a preferencia que os bibliophilos intelligentes dão em geral ás primeiras edições sobre as que se lhes seguem, embora estas se digam feitas com o maior cuidado e apuro, e por pessoas de quem poderia esperar‑se bom desempenho do encargo que assumiram.
Ultimamente appareceu terceira edição dos Poemas, que é hoje a unica vulgar, porque a mesma de 1771 já se vai tornando rara, seu titulo é:
Poemas Lusitanos do Doutor Antonio Ferreira. Terceira impressão. Lisboa, na Typ. Rollandiana 1829. 16.° 2 tomos. Sahiu por diligencia do proprio impressor J. F. Rolland, e tem a vantagem de ser feita sobre a de 1598, e por isso mais correcta em alguns logares do que a de 1771. Mas em desconto, além do formato acanhado em demasia, falta‑lhe a vida do poeta, e as duas comedias, que o editor, não sei porque, deixou de incluir. É portanto das tres a que menos vale, e só se deve ter em ultimo recurso.
Poderia, a exemplo do que tenho seguido, e continuarei a practicar com outros auctores, tocar aqui alguma cousa ácerca do merito litterario‑poetico do Dr. Antonio Ferreira, e dos valiosos serviços que este distincto classico prestou á linguagem e poesia portuguezas; porém cumpre não alongar demasiadamente o artigo, e por isso lembrarei aos que quizerem abundantes especies quanto a esta parte, alem da Memoria já citada do P. Antonio das Neves Pereira no tomo V das Mem. de Litt. da Acad. R. das Sc. de pag. 1 a 151, outra do insigne philologo Francisco Dias Gomes no tomo IV das mesmas Memoria, de pag. 25 a 305, e o Ensaio Biographico‑critico de José Maria da Costa e Silva no tomo II de pag. 74 a 158, onde poderão saciar a sua curiosidade.
Passemos a tractar da tragedia Castro, e da questão a que ella tem dado logar.
A edição mais antiga que d’esta tragedia se conhece, feita onze annos antes da publicação das outras obras de Ferreira, é a de que o Doutor Antonio Ribeiro dos Sanctos possuia um exemplar na sua selecta bibliotheca, e que por morte d’elle passou para a livraria de Monsenhor Gordo, onde a viu o erudito bibliophilo José da Silva Costa: e conforme ao testemunho d’este, intitulava‑se:
688) Tragedia muy sentida e elegante de Dona Ignez de Castro a qual foi representada na cidade de Coimbra. Agora nouamente acrescentada. Imprensa com licença por Manoel de Lyra 1587. 8.º E com quanto fosse a mesma que anda nas obras de Ferreira, havia n’ella (segundo diz o referido Costa) consideraveis alterações e variantes; nem trazia a declaração do nome do seu auctor. Ainda ignoro o destino que levou a final este rarissimo exemplar, nem tenho descuberto memoria de algum outro similhante. – Ha sim exemplares da tragedia, dos quaes me recordo ter visto dous, ou tres, com o titulo: Tragedia de D. Ignez de Castro, pelo Doutor Antonio Ferreira. Lisboa, sem nome do impressor 1598. 8.º Mas a simples inspecção dos typos mostra que esta data é falsificada, e que deve ter sido impressa muito mais recentemente, e talvez pelo meado do seculo XVII. O seu contexto (tanto quanto eu posso julgar, pois não tive occasião de confrontar taes exemplares com as edições completas das obras de Ferreira) não differe da que anda com os Poemas impressos no mesmo anno, e por isso inclino‑me a julgar que será mera reproducção d’esta.
Seja porém o que for, é certo que Antonio Ferreira esteve por muitos annos na posse pacifica e nunca disputada de ser elle o auctor da Castro, tal qual se publicara em seu nome, até que se attentou em que existiam na lingua castelhana duas tragedias, uma com o titulo de Nise lacrimosa, outra com o de Nise laureada, sendo assumpto da primeira a morte de D. Ignez de Castro, e da segunda a sua coroação como rainha (mandada fazer alguns annos depois por D. Pedro, já rei de Portugal, e que então declarou havel‑a recebido em vida por sua mulher legitima). Attribue‑se a composição d’estas tragedias a Fr. Jeronymo Bermudes, frade dominicano, natural de Galiza, e contemporaneo de Antonio Ferreira; postoque Barbosa na Bibl. Lusit. tomo I, e o P. Antonio dos Reis no seu Enthusiasmo Poetico num. 37, affirmam serem de Antonio da Silva, portuguez, e natural d’Evora.
Comparada, pois, a tragedía Nise lacrimosa com a Castro de Ferreira, viu‑se que salvas algumas insignificantes omissões, ou augmento de versos, e algumas transposições de scenas, ambos os dramas apresentavam tal identidade de ordem, de personagens, de pensamentos, de estylo, e até de versos, que se tornavam uma e a mesma cousa. Esta identidade sobresahia mais que tudo nos choros, por serem estes absolutamente os mesmos em qualquer d’elles. Ficava para logo evidente que uma d’estas peças fôra copiada da outra restava saber qual dos dous era o plagiario, se Ferreira, se Bermudes. Bouterweck, o primeiro que tractou esta questão, deixou‑a indecisa; porém o sr. Martinez de la Rosa, que mais de espaço tractou o ponto nas notas á sua Arte Poetica, depois de varias considerações, concluiu sentenciando o pleito a favor de Ferreira, e declarando que Bermudes fora o plagiario. Eis aqui as razões em que elle se funda: «A Nise lacrimosa sahiu á luz em Madrid em 1577, postoque já dous annos antes estava composta e dedicada, segundo consta. A Castro de Ferreira sómente se imprimiu em 1598, mais de vinte annos depois (vê‑se que não conheceu a existencia da edição de 1587, que acima citei) porém como o auctor era falecido desde 1569, é evidente que a sua obra estava escripta antes d’esse anno, ainda que não publicada. Passa como certo que Bermudes residira por algum tempo em Portugal; poderia mui bem ser que tivesse tracto com um humanista tão distincto e conhecido qual era Antonio Ferreira; e ainda que n’esse caso ficaria logar para disputar‑se qual dos dous mostrou ao outro a sua composição manuscripta, e allegar‑se a favor do hespanhol a sua prioridade na publicação, todavia devo manifestar de boa fe, que cotejando ambas as obras, me parece que na portugueza se descobre o verdadeiro original.»
Não obstante esta conclusão do sabio philologo hespanhol, ainda resta logar para algumas duvidas: José Maria da Costa e Silva apresenta duas, que não podem deixar de merecer algum peso, e que conviria resolver. A primeira funda‑se em que tendo Antonio Ferreira escripto treze odes, que andam nos seus poemas, sem que entre elles venha alguma sapphica, o que dá indicio de não ser versado n’este genero de metrificação, appareçam logo duas d’essa especie nos choros da Castro: e que existindo essas duas eguaes, e identicas na tragedia castelhana de Bermudes, ha tambem na Nise laureada d’este ultimo outra ode no mesmo metro, e similhante, o que dá logar a crer que Bermudes estava habituado a esta especie de composições.
É a segunda difficuldade, que o estylo e a versificação das duas tragedias hespanholas são inteiramente conformes entre si, e parecem de um mesmo auctor. E como ninguem ainda disse, nem suspeitou que Bermudes tirasse de Ferreira a Nise laureada, parece mais natural que elle fizesse tambem a outra, em vez de julgar‑se provavel que na obra que e reconhecidamente sua procurasse e conseguisse imitar tão parecidamente o estylo alheio, que na outra tragedia havia copiado.
Deixando por tanto aos criticos a solução d’estas difficuldades, o que não tem duvida é que Antonio Ferreira em vida dava como sua a Castro, e que isso lhe valeu os louvores que Bernardes por ella lhe dedicou em um soneto que e o XCIV nas Flores do Lima, a que o mesmo Ferreira respondeu com outro que vem no livro 2.º dos seus Poemas sob n.° XXV. Parece que só um plagiario sem vergonha poderia assim obrar, apropriando‑se uma obra alheia, e de auctor existente, perante os contemporaneos que a todo o momento poderiam conhecer o logro que lhes pregava. E deveremos suppôr Ferreira n’este caso?
Além da traducção em francez, que Barbosa diz fora feita da Castro, e se imprimira em Paris, ha tambem uma versão ingleza pelo traductor dos Lusiadas Musgrave, a qual se publicou em Londres em 1823. – V. John Adamson na Lusit. Illustrata pag. 5.
[Diccionario bibliographico portuguez, tomo 1]