Teolinda Gersão, ATRÁS DA PORTA E OUTRAS HISTÓRIAS, Lisboa, Porto Editora / 2019

Teolinda Gersão, consagradíssima autora de Atrás da Porta e Outras Histórias, o seu mais recente título, ofereceu à Literatura Portuguesa seis romances, seis colectâneas de contos, duas novelas, dois volumes de diário e um livro infanto-juvenil, ou seja, um total de dezoito títulos, em trinta e sete anos de vida literária, que lhe valeram treze prémios no arco temporal de 1981 e 2018, para além da sua produção ensaística, enquanto professora catedrática de Literatura Alemã e de Literatura Comparada.

O leitor, que olha para este livro na bancada de uma livraria, reconhece de imediato o itálico em relevo, característico do nome da escritora, a encimar a Trade Mark, um T e um G dentro de um círculo. As letras do nome da escritora são sempre maiores do que o título, sendo que a Marca Registada é, como sabemos, símbolo de garantia de qualidade. A capa de Susana Cruz é um modelo de adequação aos textos: a porta entreaberta mostra uma gaivota a espreitar. No ângulo superior esquerdo vemos outra gaivota a sair da capa, em pleno voo. A porta é sombria e o interior luminoso, como a matéria literária dos contos, procurando ir além das aparências, descendo abaixo da superfície das coisas. A porta simboliza o lugar de passagem entre dois estados, entre dois mundos, o conhecido e o desconhecido, o segredo, a intimidade, a luz e as trevas. A porta que fecha é a mesma que abre e convida à viagem. A porta que acolhe é a mesma que expulsa. A porta que protege é a mesma que se escancara. Só o movimento difere, só os afectos mudam os gestos de homens e mulheres que povoam estas narrativas, formando um macrotexto onde lemos, em contraluz, que o mundo e a vida não são o que parecem. Teolinda Gersão pratica uma poética romanesca pautada por uma narratividade que nunca abdica do sentido da representação. Não tece labirintos verbais, antes cria uma empatia narrativa que leva o leitor, não apenas a compreender, mas a surpreender-se com o desfecho das histórias. Um pensamento profundo, uma ordem sintagmática nítida, pela simplicidade da frase, despojada de tudo o que é acessório, um convite à indagação, ao desvendamento, à abolição das certezas estabelecidas, um apelo à coragem de questionar o mundo. O estilo de Teolinda caracteriza-se pela luminosa transparência da linguagem, de que nos falava José Rodrigues Miguéis: «O Estilo é como uma vidraça através da qual se observa, sofre ou goza a paisagem humana ou a natural: melhor, ou sem dar por isso, se o vidro é de alta qualidade; mal ou pior, se ele é defeituoso ou ordinário. O Estilo é algo feito para servir sem se notar: as imagens devem trespassá-lo como a luz do sol à vidraça.» (Aforismos & Desaforismos de Aparício, 1996, p. 56)

Tal como em Miguéis, a claridade da escrita de Teolinda Gersão advém do aturado trabalho meticuloso para limpar a vidraça, para que nada se perca na pragmática da representação. A autora encontrou o mote para estes contos na mensagem que as doze crianças tailandesas e o seu treinador publicaram, depois de terem conseguido sair da gruta onde permaneceram presas durante dezassete dias, num dos mais espectaculares resgates dos últimos anos. Num momento em que a palavra esperança está a desaparecer da literatura, Teolinda constrói, a partir da tragédia tailandesa, a belíssima nota de abertura, apontando a saída da clausura claustrofóbica do túnel, do escuro para a luz, do desespero para a esperança, ou seja, uma belíssima metáfora da vida:

«Se um dia te encontrares numa caverna ou túnel completamente escuro e sufocante escolhe uma direcção e segue-a até onde a força e a esperança te aguentarem: resiste agarrando-te às paredes, escavando em volta, rastejando na lama, nadando em poços ou correntes de água que subitamente te arrastem, a ponto de te sentires morrer. Resiste, apesar de tudo, e não cedas. Contra todas as expectativas, há uma possibilidade ainda que remota, de conseguires sair da escuridão, mesmo que, fora de ti, não haja nenhuma luz.» (p. 5)

O sujeito é ele mesmo o criador da luz, não a que lhe oferecem, mas a que encontra no interior de si mesmo. A luz de quem quer entender, como no conto epónimo do livro. Numa total inversão de comportamentos, o médico psiquiatra é bem mais doente do que o suposto doente. Doente por falta de coragem para ele mesmo fazer as perguntas que o consulente lhe faz. Doente de inacção, de excessiva adaptação, de cobardia. que o impedem de questionar o mundo.

No incipit o jovem parece eterno na sua pujança de dador de esperma, pai de tantos filhos desconhecidos espalhados pelo mundo. Todavia, no presente da narração, é sem-abrigo que matuta num certo filho que nem chegou a nascer. Nesse passado tudo lhe parecia «simples e banal como ser dador de sangue, medula, ou qualquer órgão transplantável» (p. 9). Era um jovem alto e belo, media um metro e noventa e um, mas a simplicidade do passado era também irresponsabilidade, imaturidade: «porque nessa época me dava prazer, eu pensava com frequência que um homem poderia ter centenas ou milhares de filhos» (p. 9-10). Imaturidade que advém de ainda não saber que a paternidade é uma atitude, uma prática quotidiana, porque ser pai não é sinónimo de ser progenitor. Velocidade, correria, vertigem, como se a vida não tivesse fim, cilindrando tudo e todos à passagem: «Andava de skate pela rua e, no meu circuito favorito, à beira de um parque, deslizava vertiginosamente debaixo das árvores, esmagando pelo caminho milhares de folhas secas.» (p. 10).

A sensação de poder torna-se bem patente na frase «Em cima do skate eu era maior do que eu». A sua percepção das coisas fá-lo sentir-se «imortal», «quase como um deus», dando saltos acrobáticos no ar. Todavia, o princípio da realidade anula a ideia de grandiosidade, pela justificação pedestre que apresenta para o exercício da actividade de dador, apenas desejando comprar uma prancha nova de skate e ir mais vezes ao cinema. O símile do jardineiro e da mangueira a regar o jardim permite-lhe ver a água como esperma vivificador, «um jacto ininterrupto, brilhante de sol, molhando o canteiro de lés a lés». O sexo como princípio totalizador leva o jovem a fazer equivaler superioridade com quantidade, sentindo-se poderoso pela numerosa prole. Tudo foi vertiginoso na vida deste homem. Casamentos que se sucediam, amantes que perdeu e desapareceram. O que julgava eterno não passou da vida efémera de álcool e drogas que lhe diluíram as recordações. O rasto que pensava ter deixado no mundo é o desconhecido, o ignorado, o que lhe povoa a vida de solidão. No presente, a rua é o seu mundo, a sua casa. O que lhe ficou na memória é o que não houve: o rasto de um filho que nem chegou a sê-lo, encerrando o conto: «Para mim não deixa de existir e creio mesmo que é o meu preferido. Comprei para ele uma caixa de música minúscula, do tamanho de uma caixa de fósforos, e há muitas noites em que a ponho a tocar rodando uma pequena manivela, uma vez e outra até ele adormecer.»

No segundo conto, o que o funcionário de uma grande empresa julga serem patos no espelho de água são afinal gaivotas «que pertenciam ao mar e ao rio e eram selvagens», como são também selvagens as gaivotas do conto «Proximidade». A conferência que o funcionário não ouve, e que deveria pelo menos parecer interessante, revela-se completamente soporífera. A vida deste homem que viajara pela Índia e pela China não passa de marasmo telecomandado, esvaindo-se, dia após dia, em sono-anestesia, como «um imenso alívio letal».

«O Amor Bruxo», título que intertextualiza a obra de Manuel de Falla, também não é o que parece. A mulher julga viver uma grande história de amor e de paixão, mas na realidade vive uma história de ilusão e obsessão. O homem por quem morre de amores não passa de um vulgar sedutor que a leva à morte real. Acabará ardendo de ilusória paixão, consumida pelas chamas de um incêndio, fogo que arde e se vê arder, vida transformada em cinza.

O conto «Visitando o Filho» é um murro no estômago desta sociedade hipócrita, que vive de aparências, de enganos. Também nada é o que parece na história excelentemente contada, que se intitula «História mal contada». A mulher protela e enreda o divórcio, finge que quer o que nem sabe se quer. O marido finge uma cena de sedução que é afinal de violência. E quando, finalmente, ele consegue o que parece querer, é o marido que chora, mostrando o contrário do que nos fez crer. Enredo enovelado de emoções, de ironia amarga sobre o desconcerto dos seres humanos, é também a história do casal que se divorcia, no conto «Os Dias de Sol», sonhando a mulher uma vida fantástica ao lado de um homem de sonho, e tendo na realidade uma vida sombria destruída pelo acidente que o condenou à cadeira de rodas.

No conto «O Labirinto», a finíssima ironia da autora coloca um homem num bar onde entra para perguntar o caminho para as Almoinhas Velhas – ou é este o pretexto para lá entrar? A pouco e pouco embriaga-se, perdendo o tino, perdendo a memória, no meio de um labirinto de informações que vai dando ao sabor da bebida cujo efeito, também de leitura, provoca uma gargalhada, quando o homem volta para trás e pergunta ao empregado: «Eu, quando cheguei, para onde lhe perguntei o caminho?»

O desconcerto da finança está bem patente na análise que dele faz a célebre Dona Branca, a banqueira do povo, nascida na miséria, morta na miséria, como condição atávica, como cauda enrolada da serpente, numa espécie de reescrita das palavras de T.S. Eliot, «In my end is my beggining». Para trás deixará o mundo dos prestidigitadores. Palavra plena de alusões, porque contém os dígitos, os dedos, que com presteza simulam que o que parece não é, ou seja, a ilusão perfeita de quem pensa ganhar para, afinal de contas, perder o dinheiro e a liberdade, no caso de Branca dos Santos, seus padroeiros onomásticos que de nada lhe valeram. Nas suas memórias de além-túmulo, Dona Branca interroga Deus, apresentando queixa do mundo, invocando o seu santo nome em vão. O volume termina sob o signo da ironia magistralmente marcada pelo advérbio: «E, no entanto, Deus nunca veio, e provavelmente nunca virá, falar comigo.» (p. 122)

O mundo visto do além é o tema da narrativa «Nascer», eco da metempsicose, apresentada no final do livro X da República de Platão. Para nascer, para vir aquém, o ser que ainda não é terá de atravessar uma barreira, como um rio Letes de olvido, em que se perde todo o conhecimento passado, e se retoma, como Sísifo, a pedra às costas para viver múltiplas vidas de que o ser nada sabe. O vento é o elemento que tudo decide, mesmo quando decide ir contra o aconchego desse mundo pacífico do além, vento-sereia que convida ao desastre humano de nascer, para viver, para morrer, para esquecer. «O primeiro momento é o grito», como quem se arrepende de ter nascido. Todavia, sem esse grito primordial não há vida. É o ar, vento interior da respiração, primeira luta que ou se ganha ou se perde para sempre. É o desejo de conhecer que impele o ainda não ser a querer ser. E como chamar a este ainda não ser? Teolinda responde no conto intitulado «A Criação da Criatura», objecto verbal em constante metamorfose, maravilhosa metáfora do processo de escrita da autora. O significado profundo do belíssimo conto «Nascer» será dar voz ao livro, criatura luminosa e transparente de palavras feita, que vai sair do túnel escuro das letras, espreitar por uma frincha da porta ou mesmo forçá-la a abrir-se. Essa tentativa sempre renovada é o objectivo da escrita. Teresa Martins Marques

Publicado na Colóquio/ Letras nº 202 Setembro/ Dezembro de 2019, pp. 239-242 e na página de Facebook da autora