Vamberto Freitas, bordercrossings: leituras transatlânticas V, Ponta Delgada, Letras Lavadas, 2019

A história da humanidade faz-se a atravessar fronteiras. Desde os grupos de caçadores e recolectores há milhares de anos às campanhas militares e aos incessantes movimentos migratórios, e dos avanços científicos à globalizada sociedade da informação, o homem procura ir além de si mesmo, o que só resulta no diálogo com outrem: dessa livre interculturação nasce um sentimento de semelhança na humanidade, em que assenta existência digna. Um crítico literário deve ser sensível a esse voto de igualdade.

No campo da cultura, este regime de fronteira vive de uma produtiva curiosidade pelo lado de lá, que é também modo de nos definirmos. Em casos particulares, a ferramenta linguística é decisiva, ou ficamos presos atrás do espelho. Em última instância, vale-nos a tradução.

Desde 1761-1762, quando Francisco Bernardo de Lima funda, no Porto, a Gazeta Literária – nossa primeira revista literária –, verter para português recensões a obras estrangeiras era uma resposta possível, mesmo chegadas com anos de atraso. Acrescentava-se reflexão sobre clássicos portugueses, e tínhamos, assim, a aliança crítica perfeita, nos seus alicerces cosmopolitas.

Se, no século XX, há breves ensaios sobre autores estrangeiros – caso de José Régio, por interposto francês –, a recensão, no que significa de atenção crítica ao recém-editado, só nos anos 70 se esboça – e mais sobre o entre nós traduzido, não sobre originais ainda frescos em Londres, Paris, Roma, Madrid, Nova Iorque… João Gaspar Simões, que teve uma costela de tradutor, preocupou-se com a edição nacional (e não foi pouco); hoje, Miguel Real segue-lhe os passos, donde resulta um grave fechamento em dois nomes responsáveis.

Na minha prática de décadas, além de tradutor de húngaros, pude misturar lusos e títulos traduzidos ou lidos no original, reunidos em Literatura Europeia e das Américas (2019), aproximando-me, com o milheiro de páginas da futura reedição de Verso e Prosa de Novecentos (2000) – sobre portugueses dos séculos XX e XXI –, do políptico BorderCrossings: Leituras Transatlânticas, iniciado por Vamberto Freitas em 2012, singular experiência entre nós.

A recensão, bem acima da nota ou resenha jornalística, adquiriu importância nos passados anos 30 e 40 com a emergência de páginas e suplementos dedicados à literatura e arte. Aí pontificou, numa colaboração multímoda vinda do Diário de Lisboa e que terminou no Diário de Notícias, o verbo por vezes derramado de João Gaspar Simões, cujo útil impressionismo teve a alternativa universitária, sobretudo, na Colóquio/Letras, a partir de Março de 1971. Comuns ao jornal e à revista académica tivemos Jacinto do Prado Coelho, José-Augusto França, David Mourão-Ferreira, entre muitos outros. Desaparecidas colunas ideológicas (Seara Nova, Vértice…), o JL – Jornal de Letras, Artes & Ideias procura, desde 1981, um mar chão, uma década depois acompanhado pelos suplementos do Público.

Seria injusto quedarmos neste rápido balanço. Na tradição literária do arquipélago noveno, Vamberto Freitas conquistou um espaço regular no Açoriano Oriental, que repete na Imprensa da Portufórnia (p. 46), e passa às redes sociais e ao livro. Como divulgação por estes meios, não tem rival. E, dentro de uma bibliografia activa começada em 1990, esta capacidade de pôr em livro – parafraseando o Fernão Lopes de ‘poer em caronica’ – as colunas efémeras do jornal não tem par, quando Gaspar Simões só esporadicamente o conseguiu, antes da súmula de décadas em volumes tardiamente saídos na Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Um elemento distintivo em Vamberto Freitas é, além de atender a autores do Continente, cuidar do ilhéu, com raízes e ramos além-Atlântico. Olhando ao todo nacional, essa reflexão sobre idiossincrasias locais – aquela ‘açorianidade’ cunhada por Vitorino Nemésio em 1932 – vai muito à frente do processo, de algum modo sistemático, iniciado no Funchal somente nos anos 90, enquanto, para Trás-os-Montes e Alto Douro, o ‘reino maravilhoso’ (1941) de Miguel Torga, que designei como a terra de duas línguas (português e mirandês; título de antologia, 2011, 2013), eu mesmo me fiz fautor de uma singularidade.

Esculpir essa açorianidade, in loco e na margem americana (como já fizera, no articulismo do Diário de Notícias, na margem que desemboca em Lisboa), é o já longo desafio de Vamberto Freitas, reiterado na primeira secção deste livro, e logo no texto inaugural reunindo elogio de dois velhos e comuns amigos, Urbano Bettencourt e José Martins Garcia.

Fui colega daquele na Faculdade de Letras de Lisboa. Além de docente e animador cultural, antologiador, assinando microficções, esse poeta de mão-cheia é um lúcido ensaísta. Fui aluno de José Martins Garcia na mesma Faculdade, aqui celebrado com O Amanhã não Existe (2017) – «outro grande e indelével contributo para esse esclarecimento da escrita feita por açorianos, ou mesmo por outros, mas que têm os Açores como palco de vida e arte» (p. 18) –, enquanto Urbano prossegue na edição da sua obra completa. Ter ministrado na Universidade dos Açores uma cadeira de Literatura Açoriana deveria servir de exemplo ao demais país.

Outro segmento importante quase ausente da nossa crítica é a atenção maior aqui dada aos Estados Unidos, em tradução e no original. Ter quase trinta anos de ar americano é razão bastante para um conhecimento de que beneficiamos, acrescido de uma inclinação para relacionar literatura e sociedade, e balançando grandes questões do nosso tempo, seja a memória de vários holocaustos, seja o noticiário da actual administração em Washington.

Sob a égide de Edmund Wilson, que o ora desaparecido Harold Bloom «viria a considerar o crítico canónico norte-americano do século XX» (p. 188), num elogio recorrente, mesmo quando dele se distancia, Vamberto Freitas sabe que outros podem gostar de Proust e James Joyce, dele tirando explicações, senão prazer. Sem espírito de fronteira, capaz de dar o salto, ou aceitar que vizinhos o façam, não havia interpretação. Extrair algo de textos ditos difíceis é função nobre; nestes, mais do que nos fáceis, o resultado fica sempre em aberto. Cito, após consideração sobre Wilson leitor de Finnegans Wake, e no cenário de A Casa da Cabeça de Cavalo: «A grande arte literária tem momentos assim, cada leitor terá de decifrar os significados de cada passo narrativo ou diálogo sobre acontecimentos incertos, acontecidos ou meramente imaginados pelas vozes que nos vão contando a história de cada outro personagem ou acontecimentos colectivos dentro e fora das geografias referenciais de qualquer ficção.» (p. 147)

Entre estes e outros méritos, bastaria a informação sobre nomes para mim desconhecidos – na diáspora, sobretudo – e estava ganho o volume. Ainda, a leitura de obras há muito saídas, que eu mesmo li e agora releio segundo outro evangelho, quando o crítico recupera, nas reedições, autores como Teolinda Gersão e Manuel Alegre.

Não há espaço para estudar a técnica da epígrafe, ou arte de seleccionar um excerto indicativo da obra em análise. Também na variedade de espécies tratadas – ficção, poesia, cronística e jornalismo – este «arquivo criativo» (p. 221) se afigura único.

Fugindo ao tom, que nem por ser crítico deixa de ser de proximidade, a enunciação autoral torna-se agora muito presente e, a espaços, pungente. Da dupla dedicatória limiar ao tu marcado no segundo texto (p. 29-32), sobre Adelaide Freitas, convocada noutros lugares, entenderá o leitor o drama pessoal a cuja luz, ou sombra, foram escritas algumas prosas. Isso conduz-nos a uma, para mim inesperada, autobiografia disseminada, sob máscaras ou já explícita, seja no pretexto de um Hemingway (p. 95-98), seja sobre “As outras américas que não vivi” (p. 193), entre outros lugares. O volume encerra com entrevista e desejo: «Queria muito fazer uma biografia colectiva da minha geração. Ou numa narrativa sequencial, ou então em ensaios interligados e revendo a mesma história de quem entrou na minha vida, quer em termos literários quer em termos pessoais.» (p. 228)

Com este quinto painel, vário nos processos e nos objectos linguísticos e geográficos em estudo, Vamberto Freitas torna-se, nesta década, o principal crítico literário português. Entretanto, sem abandono da intermediação indispensável à coisa literária, pode oferecer-nos um retrato de ser dividido entre línguas, territórios e paisagens. Duplo privilégio, ganharemos todo um passo mais na marcha da humanidade. Ernesto Rodrigues

Texto publicado originalmente no Açoriano Oriental de 28 de Abril de 2020