Rui Gonçalves, Dos privilégios e prerrogativas que o género feminino tem por direito comum e ordenações do reino mais que o género masculino

Da autoria de Rui Gonçalves, natural de S. Miguel, jurisconsulto, formado na Universidade de Coimbra, data de 1557 o escrito Dos privilégios e prerrogativas que o género feminino tem por direito comum e ordenações do reino mais que o género masculino, livro dedicado à rainha D. Catarina. A obra divide-se em duas partes: numa primeira parte, descrevem-se nove virtudes pelas quais as mulheres são iguais ou superiores aos homens, acompanhadas de mais de 50 exemplos de mulheres-modelo (da época do autor, da mitologia e da Antiguidade); numa segunda parte, que o autor considera a principal, fornece-se às mulheres toda a legislação (nacional e internacional) que ao seu género diz respeito, com diversas explicações sobre a mesma.

O presente tratado distingue-se por se dirigir por inteiro ao género feminino, algo incomum no quadro das edições coetâneas, e por constituir compilação fundamental documentada, igualmente sem paralelo à época, capaz de instruir as mulheres acerca das suas valias e dos seus direitos.

 

António Vieira

Sermão XXVII. Sermão do Rosário contra a escravatura

Votos sobre as dúvidas dos moradores de são Paulo acerca da  administração dos índios

Não poderíamos deixar de considerar nesta coleção alguns textos emblemáticos do pensamento pioneiro do padre António Vieira. Embora o Círculo de Leitores tivesse publicado recentemente a Obra Completa deste escritor maior da história da literatura portuguesa, onde podemos facilmente encontrar muitos textos pioneiros em vários campos, quisemos fazer uma seleção minimalista de três pequenos textos em que Vieira se revela frontalmente crítico de algumas estruturas sociais de desigualdade que afetavam grupos discriminados no seu tempo pela sua cor, origem étnica e religião: judeus, índios e negros. A sua intervenção ativa em prol de uma sociedade mais justa e respeitadora da dignidade da condição humana expressa na sua diversidade multicolor e multiétnica, acompanhada de uma reflexão que se revelou precursora do pensamento que afirmará no Século das Luzes sobre a igualdade do género humano à luz do direito natural, tem nestes dois textos escolhidos um tópicos mais representativos do pensamento humanista e pioneiro do Padre António Vieira.

 

Paula da Graça, Bondade das mulheres vindicada e malícia dos homens manifesta

Em 1715, foi publicado, em Lisboa, um folheto com o título Bondade das mulheres vendicada e malícia dos homens manifesta.

Este escrito pretende, pois, e expressamente, refutar as asserções profundamente misóginas do quinhentista Baltazar Dias na sua conhecida Malicia das Mulheres, folheto cuja 1ª edição de que se tem notícia data de 1640 e que se reeditou ao longo de todo o século XVIII. Nada sabemos sobre Paula da Graça, além do que diz: nasceu fora de Lisboa e é aí residente. Mas a obra revela ser pessoa culta, capaz de observar criticamente o seu tempo com as suas práticas e valores, dotada de poder argumentativo, incluindo o recurso ao sarcástico de mulher informada que zomba de arrazoados vulgares e ignorantes. As razões aduzidas que refutam a inferioridade intelectual e moral das mulheres notabilizam-se pela sua muito precoce lucidez, independência de espírito e atualidade.

 

António Nunes Ribeiro Sanches,  Origem da denominação de cristão-velho e cristão-novo em Portugal

Da autoria de António Nunes Ribeiro Sanches, este  escrito surge cerca de 1735 e pretende, como destaca logo sucintamente o seu título completo (Origem da denominação de cristão-velho e cristão-novo, em Portugal, e as causas da continuação destes nomes, como também da cegueira judaica, como método para se extinguir em poucos anos esta diferença entre os mesmos súbditos, e cegueira judaica; tudo para aumento da religião católica e utilidade do Estado), elucidar sobre a questão da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, traçar as causas da sua persistência e propor o método para se eliminar a breve trecho a mesma distinção.

Ribeiro Sanches, ele próprio cristão-novo e exilado de Portugal desde cedo, revela e confirma neste opúsculo a «cegueira judaica» que grassava naquele que também chamará noutra ocasião de «reino velho e cadaveroso», confirmando o estatuto do cristão-novo e a insegurança em que viviam aqueles que assim eram apelidados, de permeio com o combate profundamente antissemita operado pelo Santo Ofício, assente na prática da famosas inquirições de sangue.

A crítica inquisitorial que perpassa o documento encontra-se patente nas consciências coevas. Atribui-se a essa instituição, às suas práticas e à persistência da distinção entre súbditos a existência de um constante medo da parte dos cristãos-novos. Atribui-se-lhe também a responsabilidade da fuga de muitos para longe de território português e a descrença crescente na religião católica. Contudo, é neste escrito sanchesiano que essas condenações se expressam de forma mais sistemática, aprofundada e original, ocupando na íntegra o opúsculo.

Poder-se-á salientar ainda que o espírito de tolerância e de humanização veiculado por Sanches na Origem da denominação deve bem ser visto como um contributo crítico e sistemático de cariz precursor não apenas em língua portuguesa, mas igualmente de referência necessária no quadro internacional, uma vez que antecedeu em mais de um quarto de século o Tratado sobre a tolerância (1763), de Voltaire, reconhecido como um dos marcos da problematização do tema em apreço.

 

  1. José I e Marquês de Pombal

Lei da Liberdade dos índios no Norte do Brasil

Lei de abolição da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos

Pioneira em Portugal e nas colónias, a lei da liberdade dos índios no norte do Brasil, de 6 de junho de 1755, constitui a primeira medida anunciadora da promoção da liberdade indígena. Apesar de não se poder descurar o quadro reformador pombalino em que surge, a atribuição às colónias de uma cada vez maior liberdade de ação visou igualmente a instituição de medidas liberalizantes e valorizadoras dos povos autóctones, tornando deste modo estes seus habitantes em cidadãos de pleno direito perante o reino. É em tal contexto que podemos enquadrar esta medida fortemente inovadora, numa tentativa de reforma integral das políticas coloniais, que se reforçará em pouco tempo com novas leis do mesmo enfoque, como a de 1761 (proibição da importação de escravos em Portugal e na Índia) ou a de 1773 (fim da escravidão de todos aqueles que nascessem a partir de então no reino).

Surgida no lastro das críticas continuadas às práticas inquisitoriais e a uma sociedade enraizada no medo e na intolerância, a Carta de lei pela qual D. José suprime as designações de cristão-novo e cristão-velho, de 1773, cristaliza um longo percurso de consciencialização, em que tiveram papéis preponderantes, entre outros, nomes como Luís da Cunha, o Cavaleiro de Oliveira ou António Nunes Ribeiro Sanches. Esta peça legislativa pode mesmo ser entendida como um resultado prático dessa forte e continuada corrente crítica, vertida em opúsculo por Ribeiro Sanches, sob o título a Origem da denominação de cristão-velho e cristão-novo em Portugal. O seu valor como medida humanizante merece, portanto, o devido realce, em conjunto com o seu pioneirismo no quadro europeu e em consonância com o plano reformista levado a cabo pela governação pombalina.

 

Bocage, Cartas de Olinda e Alzira

As Cartas de Olinda e Alzira, devido ao seu teor alternativo e transgressor, só foram publicadas cerca de 50 anos depois do falecimento de Bocage, corria o ano de 1854. Pertenceu a Inocêncio Francisco da Silva o mérito de as transcrever e anotar, o qual, por precaução, não assinou a sua intervenção. Essa edição circulou clandestinamente até ao advento do 25 de Abril de 1974. Trata-se de um manifesto feminista – um dos primeiros da literatura portuguesa –, escrito em verso, no qual duas amigas dialogam sobre os problemas inerentes à condição feminina no Antigo Regime, designadamente sobre a educação, a sexualidade, o casamento à revelia dos afetos e a ausência de liberdade individual.

 

Bases da Constituição de 1822

Na sequência da Revolução liberal de 1820, o texto conhecido como as Bases da Constituição, aprovado a 9 de março 1821, perante as Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, é o primeiro documento português em que surgem firmados, em contexto oficial e em toda a sua extensão significativa, os princípios «mais adequados para assegurar os direitos individuais do cidadão», dando expressão nacional à defesa dos inalienáveis direitos do homem e do cidadão, aclamados pela Revolução Francesa e tornados bandeira ocidental, em conjunto com a emergência dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade humanas.

Neste sentido, este texto preambular do constitucionalismo português reveste-se de grande importância como marco fundamental do percurso de afirmação da ideia de direitos humanos em Portugal, por nele se evocarem e se firmarem, pela primeira vez, os direitos fundamentais dos portugueses, com a inscrição plena dos princípios da liberdade, da segurança e da propriedade, estabelecidos pela lei na primeira Constituição da história portuguesa, aquela de 1822, que, apesar de efémera, acabaria por marcar indelével e irreversivelmente o enquadramento jurídico-governativo nacional.

 

Declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão

Da autoria do publicista, filósofo e polígrafo Silvestre Pinheiro Ferreira, surgia, em 1836, a Declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão. Este texto, conforme informação dada pelo autor logo na primeira página da «Advertência», é «a simples reprodução do título primeiro» do seu anterior Projeto de código de leis fundamentais e constitutivas para uma monarquia representativa, dado à estampa, em Paris, em 1834 (que, por sua vez, correspondente ao tomo III do seu Manual do cidadão em um governo constitucional).

Não se tratando, portanto, de tema original tratado por Pinheiro Ferreira, nem no cômputo da sua obra publicada até ao referido ano, nem no que respeita à evocação do discurso dos direitos e sua proclamação em contexto português (que, desde a década de 1820, entrara no vocabulário corrente da vida social e governativa do país), merece esta Declaração destaque como obra pioneira por três motivos que consideramos essenciais: por constituir uma sistematização original, de extensão considerável, do tema em apreço; por adotar, sem rebuços e pela primeira vez no panorama editorial português, para seu título, a terminologia proclamada pela Revolução de 1789, na Declaração Universal então celebrada; por ser da autoria de um dos paladinos dos direitos humanos em Portugal, que igualmente concitou as melhores referências, em especial no tocante ao trabalho que desenvolveu em torno do direito público, fora das fronteiras do seu país.

 

Carta de lei de abolição da pena de morte para crimes civis em Portugal

Aclamada por Victor Hugo aquando da sua instituição, a lei portuguesa de abolição da pena de morte para crimes civis data de 1867 e constitui marco legislativo incontornável para a afirmação da cultura dos direitos humanos em Portugal e no mundo. Tendo sido uma das primeiras leis de abolição da pena de morte para crimes civis a ser decretada na Europa, constitui, na verdade, a primeira que nunca reconheceu qualquer revogação, sendo, portanto, a mais antiga lei permanente deste teor. A sua instituição, associada a Barjona Freitas, surge também estreitamente ligada à reforma judicial do Estado que então se ensaiava e à valorização de uma justiça corretiva, de carácter mais humano, por oposição a uma justiça de carga mais severa, aquela assente nas penas.

Recentemente, a 15 de abril de 2015, esta Carta de lei, disponível ao grande público em formato digital, no portal eletrónico da Torre do Tombo, foi distinguida, pela União Europeia, com a Marca do Património Europeu (European Heritage Label), o que reconhece e acentua a sua importância em prol da valorização do direito à vida e a uma sociedade mais humana e fraterna, de dimensão universal.