D. IOAÕ II. em o nome, e decimo terceiro entre os Reys de Portugal naceo em a Cidade de Lisboa a 3 de Mayo de 1455. sendo o terceiro, e ultimo fruto do thalamo delRey D. Affonso V. e D. Izabel filha do Infante D. Pedro seu Tio, e da Infante D. Izabel de Aragaõ. Ainda estava nas faxas quando foy jurado herdeiro da Coroa Portugueza, que governou prudente, sustentou politico, e defendeo valeroso. Nos primeiros crepusculos da idade brilhou com tal intençaõ o seu talento para comprehender as Artes dignas de hum Principe, que era escuzada a disciplina sahindo instruido pela natureza. No Tyrocinio da Adolescencia se admirou taõ veterano na Escola de Marte, que vencidas todas as oposiçoens contra a propria resoluçaõ acompanhou a seu Pay na celebre expugnaçaõ da Praça de Arzila em que deu de seu heroico valor ilustres argumentos sendo muito mais gloriosos quando na batalha de Toro salvou as reliquias do exercito Portuguez conservando-se no campo vitorioso daquelle fatal sucesso. Antes de empunhar o scetro foy duas vezes Regente da Monarchia na auzencia de seu Pay quando foy a Castella, e França, e sendo em a segunda aclamado Rey na Villa de Santarem a 10 de Novembro de 1477. voltando Affonso V. para Portugal com resignada obediencia renunciou o titulo de Rey, e conservou o de Principe. Subindo ao trono por morte de seu augusto Pay a 31 de Agosto de 1481. começou a practicar as prudentes maximas do seu governo premiando benemeritos, punindo criminosos, e ampliando o comercio pelo feliz descubrimento do famoso Promontorio chamado da Boa Esperança com o qual se abriraõ as portas à navegaçaõ da India, como taõbem do Reyno de Congo descuberto por industria de Diogo Caõ Cavalleiro da sua Casa em o anno de 1484 cuja Conquista estimou tanto que vinculou aos titulos da Coroa Portugueza o de Senhor de Guine. Para conservar o comercio, e navegaçaõ de seus Vassallos fazia respeitado o seu nome com os mayores Principes da Europa obrigando a Carlos VIII. de França a lhe restituir huma caravella com toda a carga que tinhaõ tomado os Piratas Francezes em os nossos mares, e sendo author de que os Reys Catholicos celebrassem o Tratado da repartiçaõ dos descubrimentos maritimos ficando à Coroa de Castella a parte que olha para o Occidente, e a Portugal a do Nacente. Zeloso da authoridade real abrogou dos Donatarios das terras a jurisdiçaõ criminal devida à soberania, e ordenou novo methodo no juramento da Homenagem dos Alcaydes Mores. Naõ podendo dissimular os Grandes do Reyno a diminuiçaõ dos seus Privilegios se deliberaraõ a conspirar contra a sua vida de cujo feyo crime sendo acusados o Duque de Bragança D. Fernando II. do nome, e o Duque de Viseu seu Primo, e Cunhado, mandada processar a cauza do primeiro foy degollado na Praça de Evora a 20 de Iunho de 1483. e ao segundo privou da vida com suas proprias maõs, açoens que lhe deixaraõ o nome menos glorioso na posteridade, pois em huma foy Iuiz sendo parte e em outra foy executor sendo Rey. Despozouse na Villa de Setubal a 22 de Ianeiro de 1471. com D. Leonor sua Prima com irmaã filha do Infante D. Fernando seu Tio, e da Infanta D. Izabel, e deste consorcio teve unicamente ao Principe D. Affonso o qual cazando com a Infanta D. Izabel filha dos Reys Catholicos passou infaustamente na breve duraçaõ de seis mezes, e vinte, e sinco dias do thalamo ao tumulo a 13 de Iulho de 1491. quando contava a florente idade de dezaseis annos, e vinte, e seis dias. Este tragico sucesso penetrou taõ altamente o coraçaõ do nosso Monarcha que foy a cauza de lhe sobrevir gravissimos achaques para cujo remedio sendolhe aplicados os banhos da Villa de Alvor em o Reyno do Algarve, nella falleceo ao tempo que o sol se ocultava no Occidente a 25 de Outubro de 1495. com 40 annos sinco mezes e vinte e dous dias de idade, e de reynado quatorze annos hum mez, e vinte e sinco dias. Foy sepultado na Cathedral de Sylves donde foy transferido por ordem delRey D. Manoel para o magnifico Templo da Batalha em que jáz o seu Cadaver triunfante da jurisdiçaõ do tempo sendo a incorrupçaõ do corpo indelevel testemunha da inteireza do seu animo. Teve a estatura mediana, o corpo proporcionado, e ayrozo, o semblante grave, o rostro comprido alvo, e corado; os olhos pretos, e graciosos, o naris bem feito, a boca pequena, e os dentes alvos, e bem ordenados, a barba negra, e composta, o cabello castanho, e posto que já na idade de trinta e sete annos parte delle encanecia, nunca permitio que se lhe tirasse alguma das cans que muito estimava. Foy dotado de entendimento prudente, e de memoria taõ feliz que nunca lhe esquecia tudo quanto a ella encomendava. Fallou com pureza, e elegancia a lingua materna pronunciando com tanta pauza as palavras que pareciaõ meditadas antes de proferidas. Da Historia, e Filosofia teve suficiente instruçaõ, e da Poezia se deleitava servindo a sua liçaõ de parenthesis jucundo aos negocios de mayores consequencias. Com generosa anticipaçaõ premiava os merecimentos de seus Vassallos naõ permitindo que com as suplicas lhe diminuissem a gloria de remunerador. Tao amante era da verdade, como inimigo da lizonja. Exercitou a justiça sem ofensa da piedade sendo o primeiro que exactamente observava as Leys promulgadas para conservaçaõ da Monarchia. Estimou muito o segredo como deposito da felicidade das mayores emprezas, e taõbem aos Ministros que se distinguiaõ na profundidade da sciencia, e rectidaõ da justiça. Em todos os negocios ainda que procedia com cautela, era resoluto. Armado de severidade abateo o orgulho dos Grandes julgando ser indecoroso à sua pessoa conservar emulos da Soberania. O seu peito se ornou de piedade solida assim no culto das sagradas Imagens, como na veneraçaõ dos Decretos Pontificios. Foy cordialmente devoto da Paixaõ de Christo difirindo promptamente a qualquer suplica que fosse patrocinada com as suas santissimas Chagas. A Maria Santissima dedicava ternissimos obzequios recitando quotidianamente postrado de joolhos os Psalmos Penitenciaes. Assistia cuberto de luto as tres noutes da Semana Santa ao Sagrado Monumento onde fervorosamente contemplava os excessos, que para beneficio dos homens obrara o Amor Divino nas ultimas horas da sua Vida. Eternos brazoens da sua magnifica piedade saõ o Hospital real de todos os Santos, o Mosteiro das Comendadeiras da Ordem Militar de S. Tiago, e a Igreja de Santo Antonio fundada onde teve o seu Oriente este insigne Thaumaturgo. Para significar a excessiva ternura com que amou aos seus Vassallos formou huma empreza em que se via hum Pelicano abrindo com o bico o peito para alimentar com o proprio sangue a seus filhos animada com esta letra Pro lege, &grege. Ainda quando era Principe teve de D. Anna de Mendoça filha de D. Nuno de Mendoça Apozentador mòr delRey D. Affonso V. e de sua mulher D. Leonor da Sylva ao Senhor D. Iorge tronco da preclarissima Caza, e Estado dos Duques de Aveiro. Foy insigne cultor da lingua Latina cuja elegancia exprimio em huma carta escrita em Lisboa a 23 de Outubro de 1491. a Angelo Policiano celebre Filologo daquella idade persuadindo-o a escrever no idioma Latino, ou Toscano a Historia de Portugal. Começa.
Ioannes Dei Gratia Rex Portugalliae, et Algarbiorum cifra, & ultra mare in Africa Dominus Guineae Angelo Politiano viro peritissimo, & amico suo S. P. D. Ex suavissimis tuis literis, doctissime vir &c. Sahio nas obras de Angelo Policiano lib. X. Epistol. Basileae. 1553. fol. a pag. 138. e nas Prov. da Hist. Geneal. Da Caza Real. Portug. Tom. 2. p. 162.
Em varias linguas se escreveo a Vida deste Monarcha, sendo todas limitadas vozes para publicar as suas virtudes. Na Latina a escreveraõ o P. Antonio de Vasconcellos Anaceph. Reg. Lusit. pag. 215. e o Excellentissimo Marquez de Alegrete Manoel Tellez da Sylva com igual pureza, que elegancia a qual foy duas vezes impressa: na Portugueza Garcia de Resende Moço da Camara do mesmo Rey, e Fidalgo da sua Caza; Damiaõ de Goes Chronista mòr do Reyno, e Pedro de Maris Dial. de Var. Hist. Dial. 4. cap. 10. Na Castelhana D. Agostinho Manoel de Mello cõ estilo igual ao assumpto, e Christovaõ Ferreira de Sampayo; e na Franceza Maugin, Neufuille, e Le Clede. Alem dos elogios que lhe formaraõ estes Authores, aplaudiraõ a sua memoria outras. pennas como saõ as de Fr. Bernardo de Brito Elog. dos Reys de Portug. p. 113 Foy de grande animo de se naõ senhorear de privados, inclinado a fazer merces, e remunerar serviços. Marrac. Reg. Marian. p. 151, Vir omni laude superior. Salaz. E Castr. Hist de la Caz. de Sylv. liv. 6. cap. 13. §. 2. aquien sus virttudes grangearon el renombre que justamente goza de Principe Perfecto. Osor de rebus Emanuel lib. 1. pag. mihi 6. Fuit vir clarus, et excelsus, infestus improbis, bonis propitius, justitiae cupidus, & in omni genere virtutis admirandus. Fonceca Evor. Glorios. p. 97. Na liberalidade excedeo a Alexandre, no valor se avantajou a Cesar porque naõ só triumfou dos vivos, mas por tres vezes tratou intrepido com os defuntos, e finalmente foraõ as suas excellencias taõ raras que a pezar da enveja as veneraraõ, e aplaudiraõ os mesmos inimigos. Barbud. Emprez. Milit. de Lusit. p. 109. V.º Amava por estremo qualquiera virtud en los hombres, por lo contrario aborrecía qualquer vicio publico Manoel de Faria, e Souza Europ. Portug. Tom. 2. Part. 3. cap. 4. §. 110. Era gentil Filosofo, y muy visto en las Mathematicas, y Historias. Menezes Portug. Restaur. Tom. 1. pag. 9. Castigou os Vassallos indomitos, e nunca aguardou que lhe pedissem premio os benemeritos. Souza Hist. Gen. da Caz. Real Portug Tom. 3. liv. 4. cap. 3. p. 114. Foy admiravel a prudencia, valor, e cautela com que este grande Rey se portou com os amigos, e inimigos conservando a paz, e amizade com tal modo que mais parecia superior, e arbitro do que igual.
[Bibliotheca Lusitana, vol. II]