Obra póstuma da autoria de Marcel Proust, Contre Sainte-Beuve parece, em boa verdade, ser um original manifesto literário. Por entre as várias páginas desse seu livro, o escritor expõe uma concepção pessoal de literatura, apresentando-a como expressão de um eu que, no âmago da solitude, em toda a sua poesia se desvela. Despojando-se desse outro eu frívolo que nas relações sociais superficialmente se exibe, o artista  trilha um caminho até ao mais íntimo de si mesmo, dando voz, nessa sua travessia, ao que de mais profundo em si repousa. Sibila-nos Proust, por entre o folhear de um dos seus cadernos:

[…] un livre est le produit d’un autre moi que celui que nous manifestons dans nos habitudes, dans la société, dans nos vices. Ce moi-là, si nous voulons essayer de le comprendre, c’est au fond de nous-mêmes, en essayant de le recréer en nous, que nous pouvons y parvenir. Rien ne peut nous dispenser de cet effort de notre cœur (Proust, 2010: 127).

[…] um livro é o produto de um outro eu diferente daquele que manifestamos nos nossos hábitos, na sociedade, nos nossos vícios. Esse eu, se quisermos tentar compreendê‑lo, é no fundo de nós mesmos, tentando recriá‑lo em nós, que poderemos conseguir fazê‑lo. Nada nos pode dispensar deste esforço do nosso coração (Proust, 2019: 168).

Espelho daquilo que, interior, se nos goteja quando ao recolhimento nos entregamos, a literatura surge, na óptica proustiana, como algo que se nutre não da vida quotidiana, mas antes de uma dimensão pessoal e sentimental que no silenciar das horas se manifesta. Esse outro eu, mais real embora não pertencente ao que commumente se apelida de realidade, é essa entidade que pousa, nos interstícios das sílabas pensadas, os arabescos dos instantes sentidos. E o escritor, nesse seu criativo (re-)inventar, serve-se tão-somente desses átimos a fim de perpetuar, a seu próprio modo, a lembrança de um tempo aparentemente perdido.

Reforça o autor:

Les livres sont l’œuvre de la solitude et les enfants du silence. Les enfants du silence ne doivent rien avoir de commun avec les enfants de la parole, les pensées nées du désir de dire quelque chose, d’un blâme, d’une opinion, c’est-à-dire d’une idée obscure.

La matière de nos livres, la substance de nos phrases doit être immatérielle, non pas prise telle quelle dans la réalité, mais nos phrases elles-mêmes et les épisodes aussi doivent être faits de la substance transparente de nos minutes les meilleures, où nous sommes hors de la réalité et du présent. C’est de ces gouttes de lumière cimentées que sont faits le style et la fable d’un livre (Proust, 2010: 127).

Os livros são a obra da solitude e os filhos do silêncio. Os filhos do silêncio nada devem ter em comum com os filhos da palavra, os pensamentos nascidos do desejo de dizer algo, de uma repreensão, de uma opinião, isto é, de uma ideia obscura. A matéria dos nossos livros, a substância das nossas frases, deve ser imaterial, não tomada tal como a realidade no‑la apresenta, sendo que as nossas próprias frases assim como os episódios devem ser feitos da translúcida substância dos nossos melhores minutos, aqueles nos quais estamos fora da realidade e do presente. É dessas cimentadas gotas de luz que são feitos o estilo e a fábula de um livro (Proust, 2019: 395).

Ė, pois, neste constante salientar do carácter introspectivo (e, de certa forma, irreal) da produção literária que Marcel Proust baseia a sua argumentação contra o método do prestigioso personagem do século XIX que dá nome à sua obra. Infatigável na sua demanda pela reconstituição da biografia de um autor, Sainte-Beuve acreditava poder interpretar uma obra através de informações recolhidas sobre a vida do escritor. A literatura apresentava-se, no seu entender, como reflexo daquilo que aos outros se dá, em sociedade; como algo que se embebe das manifestações exteriores do seu criador. Ora, o que, a nosso ver, Proust tão bem nos ensina na sua eloquente crítica é o seguinte: há qualquer coisa em nós capaz de atravessar os minutos que passam, isto é, passível de nos ligar ao mundo exactamente por conseguir fazer com que saiamos de nós mesmos. É nesse tornar-se outro no seio de si mesmo, é nesse imbuir-se daquilo que nos rodeia para dele fazer presente em sensações saboreado, que jaz o segredo da eternidade. De uma eternidade, não tanto feita de segundos quanto de impressões, não tanto feita de um sujeito específico e efémero quanto da relação afectiva e atemporal que esse sujeito estabelece com o que o rodeia. Eis, enfim, a única matéria da literatura: esse algo que, no rebordo da metáfora, ousamos sentir como sendo ou estando fora de nós. Mafalda Borges Soares

 

Bibliografia

Proust, M. (2010). Contre Sainte-Beuve. Paris: Gallimard.

Proust, M. (2019). Contra Sainte-Beuve. Tradução de Mafalda Borges Soares. Lisboa: Chiado Editora.