D. FERNANDO ultima producçaõ, e glorioso complemento das felicidades do fecundo thalamo dos Serenissimos Monarchas Portuguezes D. Joaõ o I. e D. Filippa de Lancastro, naceo em a celebre Villa de Santarem a 29. de Setembro de 1402. para exemplar de virtudes heroicas, e Christãas começando a cultivallas desde a infancia com tal excesso que mais pareciaõ herdadas por beneficio da graça, que adquiridas por industria da natureza. Como era dotado de entendimento agudo, e perspicaz, e de memoria feliz comprehendeo com summa brevidade as sciencias divinas, e humanas sahindo igualmente consummado na intelligencia da lingua Latina, como na penetraçaõ dos mais difficultosos Textos da Sagrada Escritura. Depois de possuir as Villas de Salvaterra de Magos, e de Attouguia que lhe dera seu grande Pay, foy eleito por nomeaçaõ de seu Irmão ElRey D. Duarte Administrador, e Governador perpetuo da Ordem Militar de Aviz cujo Mestrado vagara por morte de D. Fernando Rodrigues de Siqueira cuja dignidade como Ecclesiastica recusou aceitar por ser incompativel com o Estado Secular que professava, atè que dispensado pela authoridade de Eugenio IV. em o anno de 1434. a exercitou. O mesmo Pontifice attendendo mais às virtudes com que se ornava o seu espirito que ao soberano esplendor do seu nacimento lhe mandou offerecer para mayor ornato do Collegio Apostolico a Purpura Romana por D. Gomes Ferreira Geral da Ordem Camaldulense Abbade de S. Justina de Padua, e seu Nuncio neste Reino, cuja offerta benevolamente agradeceo, e humildemente rejeitou como indigno de ser numerado entre os Princepes da Jerarchia Ecclesiastica. Querendo dar hum claro argumento do heroico valor que herdara de seus Mayores se embarcou a 6. de Agosto de 1437. em huma Armada guarnecida de quatorze mil homens de que era General seu Irmaõ o Infante D. Henrique para conquistar a Praça de Tangere do dominio dos Mouros, e posto que o Exercito Portuguez deu varios assaltos aos seus muros pelo largo espaço de trinta e dous dias, como a fortuna se mostrasse mais parcial das armas inimigas, se aceitaraõ as Capitulações estipuladas pelos barbaros sendo a principal de que se lhes havia restituir a Cidade de Ceuta ficando em seu poder para segurança desta estipulaçaõ hum dos dous Infantes. Offereceu-se Dom Fernando em refens a Salabensala Governador de Tangere sacrificando com animo superior aos mayores infortunios a liberdade da sua Pessoa, e sendo levado a Arzilla violadas pelo barbaro as leys da hospitalidade naõ sómente o tratou com graves affrontas indignas do decoro de hum Principe, mas certificado de que nunca lhe seria entregue Ceuta o remeteo a ElRey de Fez para ser victima do seu furor. Recluso em hum tenebroso carcere donde sómente sahia para cavar a terra, e varrer a cavalharissa tolerou este Heroe da paciencia Christãa todo o genero de ludibrios, e affrontas que podia idear a barbaridade mais tyranna; naõ permittindo o menor intervallo entre taõ acerbas tribulaçõens a vigilancia do Alcaide Lazarac, atè que confortado intellectualmente com huma celestial visaõ que transformou o carcere em Paraizo voou o seu heroico espirito a coroar-se na eternidade a 5. de Junho de 1443. Quando contava quarenta e hum annos de idade. Passados vinte e nove annos foy conduzido o seu Cadaver em 17. de Junho de 1471. por industria de hum sobrinho de ElRey de Fez à Cidade de Lisboa onde sendo recebido por ElRey D. Affonso V. com pompa merecida a taõ veneraveis Cinzas se trasladaraõ para o Real Convento da Batalha como em seu Testamento ordenara. Todas as virtudes, que divididas constituem hum Varaõ perfeito se admiraraõ unidas em o coraçaõ deste religioso Infante. Foy taõ escrupuloso cultor da Castidade, que naõ permittia se proferisse palavra alguma, que levemente manchasse o candor de taõ Angelica Virtude. Como se fora Anacoreta da Thebaida macerava o corpo com rigidas abstinencias, jejuando em cada semana tres dias, e ao Sabbado a paõ, e agua. Semelhante rigor praticava nas Vigilias das Festividades de Christo, e sua Mãy Santissima; e no Triduo da Semana Santa em que assistia prostrado na presença da Divina Magestade occulta debaixo das especies Sacramentaes sendo claro indicio do sagrado ardor que lhe inflammava o peito as copiosas lagrymas que corriaõ dos seus olhos. Venerava com grande respeito aos Ecclesiasticos como Ministros da Casa do Mayor Monarcha, e com summa affabilidade se communicava aos Religiosos principalmente àquelles que se distinguiaõ na observancia dos seus Institutos. Era naturalmente compassivo para os pobres naõ permittindo que algum se apartasse da sua presença desconsolado, extendendo-se com tal excesso a sua ardente charidade que mandava dizer muitas Missas pelos Cativos, Navegantes, e Moribundos em cujo dispendio gastava a decima parte das suas rendas. Rezava quotidianamente o Officio Divino, e ouvia huma Missa solemne na sua Cappella onde se cantavaõ com summa perfeiçaõ as Horas Canonicas, e se celebravaõ com igual pompa os Officios Divinos confórme o Rito da Igreja de Salisburgo. Estas santificadas obras lhe canonizaraõ o nome na posteridade sendo conhecido com a antonomasia de Infante Santo como se vè gravado o seu retrato com diadema na grande Obra do Acta Sanctorum a 5. de Junho com esta inscripçaõ na parte inferior.

Sanctus Princeps Ferdinandus Infans Lusitaniae. Obiit Fessae apud Mauros

obses A. D. M. CCCCXLIII. V. Junij. Escreveraõ as acções da sua vida Fr. Joaõ

Alvares Abbade do Paço de Souza seu Secretario, e companheiro inseparavel das

penalidades do seu cativeiro, e como desta obra aparecesse raramente algum

exemplar por serem passados cincoenta annos que fora impressa, a reimprimio Fr.

Jeronymo Ramos da Ordem dos Prègadores no anno de 1577. reformada em muitas

palavras antiquadas, e accrescentada com algumas noticias, a qual sahio vertida em

Latim no Tomo 1. do mez de Junho da grande Obra do Acta Sanctorum desde pag.

  1. até 591. com doutissimas Notas. Tambem escreveo a Vida deste religioso

Infante Fr. Jeronymo Roman da Ordem de Santo Agostinho, o Licenciado Jorge

Cardoso Agiol. Lusit. Tom. 3. p. 543. O Padre Anton. de Vasconcellos. Anacephal.

Reg. Lusit. pag. 173. atè 194. e innumeraveis Escritores que celebraraõ a sua

memoria. Fr. Joan. Caram. Phil. Prud. p. 57. Cujus vitae integritas, & tolerantia

plusquam humana non Europaeis solùm, sed etiam barbaris fuit admirabilis, &

utrobique hucusque colitur memoria studiosissima. Menezes Hist. de Tanger pag. 24. Acabou taõ cheyo de miserias, e trabalhos, como de merecimentos, e virtudes acreditadas com tantos prodigios, e milagres, que justamente se lhe deve o nome de Santo pois sofreo com paciencia hum dilatado martyrio. D. Nicol. de S. Mar. Chron. dos Coneg. Regran. liv. 9. cap. 26. n. 10. O Cativeiro lhe grangeou o nome de Infante Santo, e a laureola de Martyr. Vascons. Anaceph. Reg. Lusit. pag. 173. In victa laborum patientia inter homines non solùm pios, sed & barbaros famae claritate fortunatissimus. e pag. 409. Diuturna inter Mauritanos laborum tolerantia Martyrem reddidit. Camargo Epitom. Histor. pag. 280. Padeciò toda su vida menguas, prisiones, oprobrios y malos tratamientos en los quales diò exemplo de paciencia, y muriò santamente. Mariz Dialog. de var. Hist. Dialog. 4. cap. 4. Varaõ de singular

virtude, inteireza de vida, e santidade. Fr. Luiz de Souza Hist. de S. Doming. do Reyn. de Portug. Part. 1. liv. 6. cap. 27. Foy bom Latino, e na Sagrada Escritura taõ versado, que parecia mais graça do Ceo, que força do estudo. Cardozo Agiol. Lusit. Tom. 3. pag. 117. Deixou no mundo raros exemplos de paciencia, e sofrimento morrendo cativo em Barberia oprimido de miserias toleradas com generosidade singular. Souza Cathal. Hist. dos Sum. Pontif. e Cardines Portug. pag. 45. Entre todos os Infantes de Portugal se fez singularmente esclarecido porque unindo ao valor a virtude soube tirar gloria do infortunio. Hypolit. Marrac. Principes Marian. pag. 138. P. Joan. Baptist. Rossi Clypeus castitat. pag. 389. Dixisses lacte innocentiae nutritum, & pane Dei timoris alitum, sic ille cor, sic linguam, sic oculos in officio continebat. Clede Hist. Gen. de Portug. Tom. 1. pag. mihi 418. Il supporta sa captivite avec tant de douceur e de patience que les Maures en ètoient ravis de admiration. Camõens Lusiad. Cant. 4. Estanc. 52.

Só por amor da patria está passando

A vida de senhora feita escrava,

Por naõ se dar por elle a forte Ceita

Mais o publico bem que o seu respeita.

Escreveo

Carta escrita em Fez a 12. de Junho de 1441. em que narra difusamente os trabalhos, que padecia no cativeiro. Conserva-se no Real Convento da Batalha como testifica Fr. Luiz de Souza Hist. de S. Doming. Part. 1. liv. 6. cap. 31.

Na Chronica deste virtuoso Infante escrita por Fr. Jeronymo Ramos da Ordem dos Prègadores està no cap. 15.

Razoamento do Infante ao Mouro Calabenfala em que prova naõ ser justo a entrega de Ceuta.

No cap. 19.

Falla do Infante aos seus companheiros entrando em Fez em que os anima a sofrer constantemente as afliçoens do cativeiro.

No cap. 22.

Falla do Infante intercedendo por seus companheiros a Lahecencalcal privado do Alcayde Lazerac.

No cap. 23.

Pranto do Infante pela morte de ElRey D. Duarte seu Irmaõ.

No cap. 27.

Oraçaõ a Deos na morte de Joaõ Gomes de Avellar que morreo de peste em Arzilla.

No cap. 29.

Falla do Infante aos seus companheiros, quando foraõ mandados que se apartassem da sua companhia.

No cap. 37.

Relaçaõ que fez o seu Confessor Fr. Gil Mendes da Ordem dos Prègadores ácerca da celestial vizaõ que teve antes de morrer.

 

[Bibliotheca Lusitana, vol. II]