“Camilo Pessanha terá escrito pouco (ou chegou-nos pouco do que terá escrito), mas continua tão vivo, cada vez mais vivo.”

Por: Fernando Pinto do Amaral

Camilo Pessanha terá escrito pouco (ou chegou-nos pouco do que terá escrito), mas continua tão vivo, cada vez mais vivo. Quando me lembro dele, vem-me de súbito à memória o soneto “Passou o Outono já, já torna o frio”, em que o poeta, após delinear os contornos de um cenário natural – “O sol e as águas límpidas do rio” –, interpela o movimento da água onde flutua um ofeliano cadáver feminino, optando pela forma interrogativa para se referir ao seu estado de espírito: “Onde ides a correr, melancolias?” O que nesta pergunta se exprime tem a ver com uma dúvida irresolúvel a propósito do destino último das suas emoções, que de certo modo se difundem na substância líquida do rio, arrastadas pela corrente.

É muito pessanhiana esta impressão de que aquilo que o poeta sente não obedece à sua vontade e decorre de um movimento inexorável a que ele apenas assiste como um espectador entediado. E a verdade é que, em Pessanha, sempre me seduziu esse encolher de ombros, essa passividade, num processo graças ao qual, como em Verlaine, vemos esfumarem-se os contornos do real ou os limites entre sujeito e objeto, até à sua substância ser a mesma: “Meus olhos apagados/ Vede a água cair./ […] // Meus olhos, afogai-vos/ Na vã tristeza ambiente./ Caí e derramai-vos/ Como a água morrente”.

Envolta nessa consistência difusa e sem fronteiras definidas, a poesia de Pessanha compõe o retrato abúlico e indiferente de alguém que, embora cedendo por vezes à efusão emocional – “Deixai-me chorar mais e beber mais” – , analisa o seu sofrimento como se se lhe mantivesse exterior, observando o seu próprio coração com a lucidez de quem vê descer um balão no fim de uma noite de S. João: “O meu coração desce,/ Um balão apagado.// Melhor fora que ardesse/ Nas trevas incendiado.”
Este “balão apagado” corresponde, afinal, a um modo de dizer até que ponto o destino se enganou, exprimindo uma consciência (muito típica de Pessanha) de que os “castelos doidos” da felicidade se esboroaram com uma rajada de vento, não por uma eventual agressão de um deus vingador, mas sob o efeito de uma simples rajada de vento – esse mesmo vento que irremediavelmente desfolhou as “rosas bravas” floridas no inverno por engano, como se escreve num dos mais belos sonetos de Clepsidra (“Floriram por engano as rosas bravas”), ideia aliás retomada noutro poema menos conhecido: “Gloriosa floração,/ Surdida, por engano,/ No agonizar do ano,/ Tão fora da estação!”

É essa melancolia de alguém obrigado a viver por engano e sempre fora da estação – contemplando a ruína de sonhos nunca sequer esboçados como realidade – que hoje continua a comover-me neste poeta que passou grande parte da vida em Macau, ocupado em trabalhos jurídicos enquanto colecionava peças de arte oriental e se entregava ao ópio e ao tédio. Um poeta pessoanamente consciente da inutilidade e do absurdo da existência humana, esse engano que um dia se resumirá a “conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos” e à voragem do esquecimento, tal como as pegadas de alguém, que pouco duram na areia de uma praia e simbolizam a vanidade de qualquer esforço humano, incluindo o da própria poesia: “Quando voltei encontrei os meus passos/ Ainda frescos sobre a húmida areia./ […]// Toda esta extensa pista – para quê?/ Se há-de vir apagar-vos a maré/ Com as do novo rasto que começa…”.

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© Fernando Pinto do Amaral, Jornal de Letras, 2017