“Em cada momento, frase ou debate consigo mesmo, o artista recomeça, e essa procura insatisfeita do poeta e viajante lê-se, sobretudo, na demanda por um verso ou no confronto com a situação pessoal e da pátria em quase 70 anos de vida literária. Como bom ibérico, esta vida é tomada, mais do que sonho, por ilusão; mas é acrescentando humanidade à ilusão que temos a sensação (muitos, a certeza) de viver a vida possível, ou única, que só uma interioridade conhece. Ainda homem do interior do país, é, todavia, dos que mais viajaram, cá e lá fora.”

Por: Ernesto Rodrigues

O primeiro poema do volume XVI e último do Diário de Miguel Torga, datado de 11 de Janeiro de 1990, intitula-se “Pórtico”. Diz assim:

Aqui começa a nova caminhada.

Se a levar ao fim, darei louvores a Deus,

Como meu Pai, ao despegar

Do dia ganho.

Não por haver chegado,

Mas ter acrescentado

Um palmo de ilusão ao meu tamanho.

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Neste septeto metricamente variado, gostaria de ler o meu propósito: acrescentar algo ao que já sabemos sobre figura centenar que honra o nosso chão, a língua que o habitou e a bem merecida universalidade.

Em cada momento, frase ou debate consigo mesmo, o artista recomeça, e essa procura insatisfeita do poeta e viajante lê-se, sobretudo, na demanda por um verso ou no confronto com a situação pessoal e da pátria em quase 70 anos de vida literária. Como bom ibérico, esta vida é tomada, mais do que sonho, por ilusão; mas é acrescentando humanidade à ilusão que temos a sensação (muitos, a certeza) de viver a vida possível, ou única, que só uma interioridade conhece. Ainda homem do interior do país, é, todavia, dos que mais viajaram, cá e lá fora.

Viver a vida possível, ou única, dignamente, é o ofício da arte, como poderá ser da pedagogia, tendendo para o nosso aperfeiçoamento; e, quando repassamos os milheiros de páginas agora em treze volumes da Obra Completa de Miguel Torga (Lisboa, Círculo de Leitores, 2001-2002)[1], depressa nos damos conta de que, entre vários instrumentos afinados, sobressai a linguagem das raízes, da qual nascem muitos símiles. Cada tarefa ou ocupação no universo rural transmontano-duriense visa prover ao dia-a-dia, o qual, se ganho, nos torna maiores, ainda que as orações de graças venham escasseando. Mas o valor da gratidão – aqui, na imagem paterna, e sê-lo-á mais na evocação da Mãe, que se transforma, por contiguidade, em louvor da terra natal –, sendo a gratidão uma das constantes torguianas, bem pode compensar mundo que tão depressa segue modas e substitui rituais…

Pede esta entrada na matéria que só adivinhemos quanto estudiosos aclararam já e virão a aprofundar. Também por isso, trata-se de um pórtico de, e para, obra significativa. Com uma recepção extraordinária – mais no estrangeiro, onde, além de revistas universitárias, justificou crítica regular nos suplementos literários da grande Imprensa (caso de El PaisABC ou Le Monde…) –, homenageado em congressos e multipremiado, dentro e fora do país, não raro, beliscado[2], a verdade é que tudo passa e, sob a espuma da glória, encontramos um autor. Ora, este veio, desde a estreia lírica de 1928 – nessa Ansiedade que renegou –, acertando, mais do que o passo, a caminhada. As breves notas introdutórias de Clara Rocha a cada um dos títulos dizem o bastante da última vontade autoral, com que se fixa um cânone. Disseminando pistas de trabalho, farei balanço desses volumes – poesia, memorialismo, teatro – e, no que ao Diário toca, exemplificarei com excertos do seu convívio bragançano[3]; antes de síntese sobre a ficção, mostrarei, recorrendo ao ensaísmo, as decisivas implicações do Brasil na sua vida e obra.

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Poesia

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Das várias facetas de Miguel Torga, talvez seja mais conhecida, lida e abjurada por tristes críticos a faceta de poeta, ainda que estudado e mais impressivo seja o contista. Na sua tábua bibliográfica, e recusado Ansiedade – de que salvou um verso-limiar da obra, «Sinto o medo do avesso» (“Ignoto”) –, figuram 14 títulos de poesia. Acontece, porém, que, dos três seguintes, não mais reeditados – Rampa (1930), Tributo (1931), Abismo (1932), em que ainda assinou com o nome civil, Adolfo Rocha –, só escolheu seis poemas, já na Antologia Poética (1981; 1994) organizada pelo próprio, e que constitui o primeiro volume das Obras Completas.

O Outro Livro de Job (1936) representa, desse modo, o verdadeiro início, também para o entreluzir de uma condição lírico-existencial, de recurso permanente à educação bíblica, a cada passo questionada, e bebida, pelo menos, até ao seminário de Lamego, que, aos 13 anos, troca por quinquénio brasileiro. Relevo, aí, o poema “Romance”: não só, a par de outros, ele deveria despertar interesse pelas formulações rítmicas e dialogais na geral produção torguiana, como, sendo narrativa familiar a que o tom adere («Ora pois: foi tal qual como vos digo: / Minha Mãe, certo dia, pôs a questão assim: / – Ou Ela, ou eu! / E ficou resolvido que no dia doze / Minha Mãe parisse. / E pariu!»), e sendo narrativa do próprio nascimento, ao insistir no verbo tão gilvicentino ‘parir’ associado à Virgem Maria, ele dizer muito da nossa condição animal. O próximo fabulista de Bichos (1940) deve ser considerado à luz de vastos segmentos líricos. Na perspectiva de uma regular intratextualidade e contaminação genérica, conviria rastrear ecos sobre o acontecimento da vinda ao mundo até ao poema “Crónica” no Diário XIV (1987). Isso diz muito, igualmente, da luta primordial, que levou Clara Rocha a escrever: «Na origem do agonismo torguiano estão dois traumas indeléveis: o da presença da morte e o do próprio nascimento.»[4]

Entretanto, em 1932, lança-se a redigir o Diário. Os seus 16 volumes começam por caber, na edição do Círculo de Leitores, em quatro – I-IV, 1941-1949; V-VIII, 1949-1959; IX-XII, 1960-1977; XIII-XVI, 1977-1993 –, e, ao alternarem apontamentos em prosa e em poesia (o que é único no género), colocavam um problema: deveriam esses poemas ser também incluídos nas 928 páginas da Poesia Completa? Assim acontece, o que melhor denuncia um particular entranhamento da formulação lírica no resultado final: não só é arte inicial e continuada, até Dezembro de 1993, como se perfila em antologia, canibaliza o Diário e se retoma, mais na vertente da oratura, em lugares do teatro e de A Criação do Mundo.

Os primeiros versos do Diário – um tão raro soneto de quebrados, em quem não cultiva as formas da tradição, a qual se dilui noutras maneiras – são um programa:

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Deixem passar quem vai na sua estrada.

Deixem passar

Quem vai cheio de noite e de luar.

Deixem passar e não lhe digam nada.

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Esse «Que vai ser / Uma estrela no chão», como termina “Santo-e-Senha”, mostra-se na diferença violenta que urge, ainda, conquistar, após efémera ligação a grupos literários, e anuncia projecto que é traço de união íntimo, a saber: como resolver o conflito entre Terra (chão) e Céu (estrela)? Entre a humanal condição e a divina?

Antes do corvo “Vicente”, que desafia as comportas diluvianas do céu, até vergar a autoridade do Criador e do mesmo autor, que tudo podem – menos extinguir a sua Criação (essa imagem de revolta estava já num agora suprimido “Descobrimento”, de Rampa[5]) –, serve-se o sujeito de várias maneiras, ora mediadas pelo olhar sossegado, já pelo recurso ao mito, ou pela constância de, em dia de Natividade, transmudar Deus em Menino Jesus, com quem melhor se entende. Daria, neste aspecto, a mais completa antologia de Natal – palavra-título constante (como são “Exortação” e tantas outras), a par de mais raros títulos com dois e três vocábulos –, regularmente associado ao dia 12 de Agosto e à pátria dos seus vagidos, ao calor do borralho e às contas que gerações ouviram, de que são exemplos “História Antiga” («Era uma vez, lá na Judeia, um rei»; 12-X-1937, Diário I) e “Segredo” («Sei um ninho. / E o ninho tem um ovo. / E o ovo, redondinho, / Tem lá dentro um passarinho / Novo. / Mas escusam de me atentar: / Nem o tiro, nem o ensino. / Quero ser um bom menino / E guardar / Este segredo comigo. / E ter depois um amigo / Que faça o pino / A voar…» [4-V-1956, Diário VII]). Mitologemas são Ícaro, Sísifo, Tântalo, com quem se identifica, logo resumido na figura de Orfeu Rebelde, colectânea de 1958[6]. E instantâneos do olhar não faltam, mormente, em pausas de viagem. Um dos melhores quadros da sua e minha região, vista há setenta anos (30-IV-1937), é “Bucólica”, «De grandes serras paradas / à espera de movimento:», e ainda hoje aguardamos que essas serras se movam um tudo nada; não deve esta leitura, porém, fechar-nos à beleza da comparação final: «Meu Pai a erguer uma videira / Como uma mãe que faz a trança à filha.» Outro “Instante” vem no Diário II (1943; 30-IX-1941):

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A cena é muda e breve:

Num lameiro,

Um cordeiro

A pastar ao de leve;

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Embevecida,

A mãe ovelha deixa de remoer;

E a vida

Pára também, a ver.

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Estes flagrantes, longe de prolixidades que nunca abandonam a lírica nacional, aguarelados por um voo de subjectividade que encontro na literatura centro-europeia, poderiam ser associados a eventual influência do modernismo no Brasil («Pátria de emigração, / […] // Achada na longínqua meninice, / Perdida na perdida juventude, / […]» (“Brasil”, Diário VIII; 20-I-1956); «Brasil onde vivi, Brasil onde penei, / Brasil dos meus assombros de menino: / Há quanto tempo já que te deixei, / Cais do lado de lá do meu destino!», “Brasil”, Diário  XI; 16-VI-1970), movimento esse alçado em 1922, de que Torga foi coetâneo à distância.

Após a dúzia de poemas de Lamentação (1943), contra o sucedâneo de Deus, um «Senhor Homem» em guerra e destruidor, extraímos, de Libertação (1944), “Arte Poética”, um soneto que, alternando decassílabos e quebrados, propõe outra metodologia:

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Tenha o poeta apenas altos cantos.

Erga a voz singular

E não mostre os seus prantos

Nem o cilício que o faz cantar.

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Noutra “Arte Poética” (Diário XIV; 1-III-1984), dirá como as coisas acontecem consigo:

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Fecho os olhos e avanço.

E começa o poema.

Rodeiam-me os fantasmas

Fugidios

Dos versos que persigo.

A regra é caminhar

E chegar sem saber.

De tal modo é cruzada

A encruzilhada

Onde o milagre pode acontecer.

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Incerto, tacteando no vazio da expressão, o Poeta lá segue:

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E ganho quando sinto a salvação

No próprio gosto de me ir iludindo.

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Cá está a ilusão, a que se aludia no princípio…

Segue-se volume de Odes (1946) aos elementos – pudera caber aqui homenagem “A Um Negrilho”, no Diário VII(26-IV-1954) –, e já Nihil Sibi (1948) destoa com “Sátira” sucinta, um dos mais secos e directos ataques à tirania:

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Disse então ao tiranos:

Que pequena e mesquinha humanidade

A vossa!

Horas, dias e anos

De crueldade,

Para que ninguém possa

Gritar que passais nus pela cidade!

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Dez anos antes, em 1938, fora proibido O Terceiro Dia da Criação do Mundo, pelo que estavam bem demarcados os terrenos. Em O Sexto Dia da Criação do Mundo (1981), referem-se as consequências: «Com o rodar dos anos, o consultório [médico, na baixa coimbrã] transformara-se, nas horas desafogadas, num centro de cavaqueira e de conspiração, que agentes da PIDE, atentos, vigiavam do largo fronteiriço.» (2001: 526) Nihil Sibi, porém, é sobre o exercício do Poeta, exercício dito Cântico do Homem (1950) na recolha seguinte.

Aqui, a transfusão de almas fecunda-se nos acima referidos símiles de antiga condição transmontana ainda sobreviva. Só se consegue um «grande coro» de arte e vida em regime de “Comunhão”:

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Tal como o camponês, que canta a semear

A terra,

Ou como tu, pastor, que cantas a bordar

A serra

De brancura,

Assim eu canto, sem me ouvir cantar,

Livre e à minha altura.

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Semear trigo e apascentar ovelhas

É oficiar à vida

Numa missa campal.

Mas como sobra desse ritual

Uma leve e gratuita melodia,

Junto o meu canto de homem natural

Ao grande coro dessa poesia.

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Simultaneamente, «à lareira / Do desespero» pátrio (“Eis-nos Aqui”), reforça-se um comportamento em apóstrofes contra traidores («Convosco, não, traidores!», “Recusa”) e luta-se contra a passividade no já musicado “Dies Irae”:

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Apetece cantar, mas ninguém canta.

Apetece chorar, mas ninguém chora.

Um fantasma levanta

A mão do medo sobre a nossa hora.

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Do ensaísmo de Portugal – de 1950, onde se contém a célebre conferência de 1941 “Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)”[7], e toda essa secção, até Traço de União (1955) e Fogo Preso (1976), agora, em Ensaios e Discursos – solta-se o breve texto inaugural “Pátria”, definição que aprendemos na infância e se tornou «nesga de terra / Debruada de mar». Portugal e Pátria são designações melhores, e mais simples, para o que somos. Num “Regresso” de Diário IX (13-VI-1960), sobrepõe «Pátria magra – meu corpo figurado…» / Meu pobre Portugal de pele e osso!» –, mimetismo que retoma em “Portugal” (Diário X; 16-XII-1953), quando se identifica, a si e ao país, como «a liberdade dum perfil / Desenhado no mar». Já no Diário XII, lembra o primeiro volante desse díptico entre terra e mar:

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Meu Portugal eterno

De cabras e carrascos!

(“Corografia”, 9-II-1975)

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De algum modo, porém, o conjunto de Poemas Ibéricos (1965; unifica 1952 e Alguns Poemas Ibéricos), procura fazer a síntese de mais vasto povoamento, que nunca o atemorizou, cronologizando heróis de ambos os lados da fronteira (com reminiscências da Mensagem de Pessoa, «Poeta da Poesia» mais aludido e lembrado do que se pensaria), onde não faltam dois outros Miguéis – Cervantes e Unamuno, dos quais tirara parte do pseudónimo –, em evocações da Guerra Civil de Espanha, que explode em O Quarto Dia da Criação do Mundo. Creio, entretanto, que as figuras mitológicas mencionadas pediam uma conclusão vivida pelo filósofo “Séneca”, também convocado para modelo de Torga, que nele elogia «A severa moral, / O estoicismo teimoso da vontade, / E o alto ideal / Duma pobre e cristã fraternidade…»

Após 1965, fechou a loja dos versos, que prosseguiam em volumes do Diário. Para completar a lista de catorze títulos, falta citar Penas do Purgatório (1954) – cujo “Princípio” explica uma situação existencial: «Não tenho deuses. Vivo / desamparado.» – e Câmara Ardente (1962), onde se reafirma o homem como «centro do infinito» (“Condição”) que o fio dos versos procura.

Com algum tempo, era possível desenvolver uma teoria crística da soma poética, em que Miguel Torga refaz as estações da Cruz…

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A Criação do Mundo

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A Criação do Mundo (1937-1981; ou: 1937 para Os Dois Primeiros Dias, 1938, 1939, 1974, 1981; 1.ª edição conjunta, 1991) é uma saga individual, comunitária, brasílica e nacional. Intervalado por O Senhor Ventura (novela, 1943) e Vindima(romance, 1945), temos, agora, o verdadeiro roman fleuve, ou cíclico, como estaria para ser, desde 1943, a ficção de Francisco Costa, ou A Velha Casa regiana, desde 1945. Por aqui se mede a novidade de projecto decerto bebido em franceses – como seria o Diário –, que, simultaneamente, trazia à baila um processo de aprendizagem de sujeito aldeão, cujo precedente nacional mais destacado, para a adolescência, era Aquilino Ribeiro, mas não para a infância que vemos desabrochar num quadro que lembra mais o “Para a Escola” (Os Meus Amores) de Trindade Coelho, tão vivo no poema “Abyssus Abyssum” (Diário I; 25-XI-1945). Já, nessa longínqua memória, «a estrada de macadame, há anos em reparação, que vinha do Porto e seguia até Bragança», merecia honras de inauguração – aí, a inaugurar a primeira página.

Dava-se o caso, por outro lado, de Miguel Torga não mais reeditar os contos de Pão Ázimo (1931) e A Terceira Voz(1934) – neste, substituía de vez Adolfo Rocha –, pelo que A Criação do Mundo, nos seus quatro primeiros dias, se transformava em cadinho de contos a irromper: BichosContos da Montanha (1941), Rua (1942), Novos Contos da Montanha (1944), Pedras Lavadas (1951), num total de 579 páginas. Tenho Miguel Torga no meu panteão dos grandes contistas de Novecentos – José Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, João de Araújo Correia… – e julgo, mesmo, que essa espécie narrativa é uma especialidade que se aclimata bem, mal vencido o Marão.

O olhar romanesco, de assento memorialístico, pode alargar-se ao que ao contista se não permite. Daí que, na notação, o conto se aproxime da diarística, a qual, no seu fôlego pensante, já se associa ao romance. O principal elemento que reúne diário e romance é, neste caso, uma intérmina reflexão sobre Portugal – a abrir, interjectivo, O Quinto Dia, seja enquanto no nosso chão se vive, e aqui se regressa, ou se revê no Brasil, na condição emigrante ou na de conferencista (O Sexto Dia), em que, subitamente, no Real Gabinete Português do Rio de Janeiro e na Casa de Trás-os-Montes, o protagonista se descobre rodeado de gente da província: «E abraçavam-se a mim de lágrimas nos olhos numa identificação orgulhosa que dava a própria emoção por testemunho.» (2001: 514)

Naturalmente, nesta e demais prosa, percebe-se uma agudeza particular sobre os brasileiros de torna-viagem, que Torga não deixou de ser.

Enquanto isso, pelos largos parágrafos de introspecção e à-vontade no dizer, saltam, inesperadamente, lições sobre si mesmo, em particular, sobre os primórdios da edição, que no-lo tornam mais loquaz do que se julga, tão forte é a lenda de senhor avesso ao autógrafo e à aproximação de iguais…

Misto de «crónica, romance, memorial e testamento» (Diário XIV; 11-XI-1985, como diz no “Prólogo à edição castelhana de A Criação do Mundo”; já no “Prefácio do autor à tradução francesa” [1984], que abre 2001: 6), pena foi que não concluísse este projecto: «Levo o sétimo Dia da Criação do Mundo atravessado no pensamento. Era o meu lavar dos cestos. O meu de profundis.» (Diário XVI; 20-IX-1990)

Clara Crabbé Rocha, em O Espaço Autobiográfico em Miguel Torga (1977), soma nesse hibridismo memórias, relato de viagem, ensaio, auto-retrato, cartas, interessando a comparação dos Primeiro e Segundo dias – anos de Ouro e Prata – nas edições de 1937 e 1969 (p. 215-220), com que lembra um artista vigilante, e como tal se assume de vez em quando. Mas, sendo o Terceiro Dia de Bronze e os Quarto e Quinto dias de Ferro, como será o Sexto, posteriormente editado? Entre o limiar escolar e um tom menor face a euforias no pós-25 de Abril (até, pelo menos, 1975, pois se refere a morte de Franco), são seis décadas de vida local, brasílica, coimbrã, europeia (espanhola, sobretudo) e nacional, que, associadas a outras tantas do Diário, emolduram o século XX.

Numa página do Diário XIII, ao curar do Sexto Dia, fala em «penitência que cumpri de ter metido setenta anos de sofrimento em mil páginas de disciplina» (26-II-1983). Noutra, explica o título: «Significa que se trata de uma obra que conta a génese progressiva numa consciência da imagem da realidade circunstancial.» (Diário XIV; 11-XI-1985)

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Teatro

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Uma palavra sobre o teatro, de fortuna incerta nos palcos, com três peças em 417 páginas, após ter retirado da tábua bibliográfica o poema dramático em quatro actos Sinfonia (1947), aliás, apreendido pela polícia política[8].

Podemos ver um díptico nas de 1941, Terra Firme e Mar, com espaços bem caracterizados, linguagem adequada e, quanto àquela, cuja casa de lavoura primacialmente me agrada, um primor de falas. Acessoriamente, ganha a nossa etnografia, na fixação de cantigas dos Reis.

Já O Paraíso (1949), nome de casino, deve ter sido um risco, se alguém a percebeu, ou fez caso. Uma catatua e um gorila abrem a ronda – a bicharia fala, portanto, e expende opiniões: influência clara da juvenil vivência brasileira; de drama e poema dramáticos transita-se para farsa que só pode arrepiar ortodoxias. No jogo, caem Adão e Eva, a qual se não cala, apesar das ordens daquele. Rebela-se, mesmo, e chama-lhe nomes feios. É um casal complicado e bom futuro não se augura, porque um filho vai anavalhar outro… Que repercussões podia ter um excesso destes nos anos 40? O silêncio, quiçá. Que alguém nos informe miudamente da história de peça tão longa e estranha, ajudados pelo “Prólogo” do Autor, que a ela regressa no Diário XVI, em 2-II-1991: «O Paraíso vai ser posto em cena. A ironia do destino! Escrevi a peça na juventude, à beira mar, são e escorreito, e sou agora o Adão que nela pintei, a começar no jardim edénico e a acabar numa cadeira de rodas, inválido, derreado, com todo o peso da vida às costas. Adivinhei-me cedo.»

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O Nordeste no Diário

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Deixem passar quem vai na sua estrada.

É um decassílabo extraordinário, «O santo-e-senha com que abri caminho», diz no último verso do último poema de Diário XI (6-IV-1973): acentuado também nas 4.ª, 6.ª e 8.ª sílabas, começa por justificar o resto do soneto feito em quebrados de 4, 6 e 8 sílabas, alternando com decassílabos[9]. Este raro soneto, repito, está datado de Coimbra, 3 de Janeiro de 1932, com que se abre o primeiro volume do mais completo Diário em língua portuguesa, sucessivamente revisto.

Assim se dividem, no tempo, os respectivos volumes (entre parêntesis, assinalo a primeira edição): I – de 3. I. 1932 a 15. VIII. 1941 (1941); II – de 3. IX. 1941 a 16. V. 1943 (1943); III – de 20. V. 1943 a 14. VIII. 1946 (1946); IV – de 12. IX. 1946 a 3. IV. 1949 (1949); V – de 7. IV. 1949 a 10. II. 1951 (1951); VI – 15. II. 1951 a 11. V. 1953 (1953); VII – de 20. V. 1953 a 3. X. 1955 (1956); VIII – de 7. X. 1955 ao Natal de 1959 (1959); IX – de 15. I. 1960 a 20. IX. 1963 (1964); X – de 5. X. 1963 a 30. VII. 1968 (1968); XI – de 2. VIII. 1968 a 6. IV. 1973 (1973); XII – de 17. V. 1973 a 10. VI. 1977 (1977); XIII – de 8. VII. 1977 a 20. V. 1982 (1983); XVI – de 11. 1. 1990 a 10. 12. 1993 (1993).

As andanças são por meia Europa – de Antuérpia a Londres, da Alemanha aos países latinos –, pelo Brasil, de Constantinopla ao México, pela África portuguesa, mas, sobretudo, pela pátria, incluindo ilhas e Macau – «Pareço um doido a correr esta pátria.» (Diário III; 4-II-1945) –, e, nesta, vingam as datações de S. Martinho de Anta, onde nasceu, e de Coimbra, onde viveu. A espaços, para refrescar, abre-se à Ibéria, e, porque acanhados e mesquinhos, é que os nacionais andam por esse mundo de Cristo; mas o que lhe faz bem é entrar no «Trás-os-Montes da minha alma» (Diário I; 30-III-1938), pois atravessar o Marão é entrar no paraíso. A serra acalma-o; nela se fortalece…

Em tempos, antologiei páginas do Diário sobre o Nordeste[10], aperitivo que agora ofereço, reforçado.

Não se transcreve o mal que diz sobre Guerra Junqueiro, que regressa em A Criação do Mundo, tal a paixão que lhe vota certo leitor brasileiro. Este poeta deve ser visto à luz do que Torga pensa sobre a literatura portuguesa e seus autores[11], que não raro compara com estrangeiros ou situa dentro das relações escrita-meio. As suas reflexões sobre a aventura literária, da simples leitura a juízos nem sempre pacíficos e mesmo contraditórios sobre clássicos, são indispensáveis para quem se abalance a uma leitura integral do Autor.

Essa necessidade de, escrevendo, «eternizar a expressão», faz corpo com a necessidade de viajar, que, «num sentido profundo, é morrer» (Diário I; 25-XII-1937). O que vemos, então, são as alturas de uma prosa lavada como os montes que conhecemos; e, simultaneamente, não só esses montes, sentidos por um Poeta, mas o seu contraponto alentejano – evidente paixão de Torga – e o demais país ao longo das páginas revisitado, numa atenção que causa inveja e espanto.

O seu iberismo irrompe a cada passo e as preocupações sobre «os guetos de Varsóvia» (Diário IX; 8-XII-1961), os Vietnames monstruosos, etc., apontam-se ao lado das farsas nacionais, caso do «folhetim trágico-cómico do Lusitânia Expresso, na sua ida de protesto e solidariedade a Timor» (Diário XVI; 10-III-1992). Não fique sem esquecer a quase ritual celebração do 12 de Agosto e tantas páginas que nos oferecem uma visão pungente do artista solidário, que, em última instância, só aceita a tirania da paisagem transmontana e, em 11-III-1993, ainda lembra a «grandeza da alma transmontana»…

Desde 24 de Março de 1940, ensaia uma visita ao Nordeste: «Tentativa frustrada para ir às Terras do Preste Baçal. Bragança é longe. Além disso, o carro, apenas atravessou o distrito de Vila Real, pôs-se a refilar, a refilar, até que parou de todo. […].»

O mesmo Abade incita-o, três anos depois: «Coimbra, 21 de Março de 1943 – […] – Ora diga lá o menino: Abade de Baçal… E o menino respondia então na sua língua que a referida pessoa exprimia ao norte de Trás-os-Montes o que o vinho generoso exprime ao sul: a força, o sabor, a pureza e a virgindade do chão transmontano.»

A relação com o Abade, porém, não é pacífica. Em 14 de Novembro de 1947, datado de Coimbra, escrevia Miguel Torga no Diário IV (1949):

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Morreu ontem o abade de Baçal, um homem pré-histórico e sábio. Pré-histórico, porque se manteve sempre na primitiva decência de uma humanidade fundamental; sábio, porque sabia do seu ofício, que era a arqueologia. Patego e sem génio, trouxe para a reflexão dos problemas da cultura um bom senso campónio, terroso, que tem a utilidade doméstica do Borda d’Água. E a sua obra é uma espécie de ‘governo do ano’ do distrito de Bragança. As luas, quando se rega e semeia, a época das colheitas, e as rezas com que é preciso ajudar a semente. Parece pouco, mas é assim que se começa.

Como bípede e transmontano, gostava de lhe ter dito duas palavras sobre a sepultura. Nada de particular. Testemunhar-lhe apenas o meu respeito, não pela obra, que é rudimentar, como digo, nem pela vida, que foi de primário, como se sabe. Gostava de o saudar pela raridade da sua casta. Andei há tempos várias léguas para ver um teixo, que é uma árvore que os botânicos dizem que vai acabar.

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No ano anterior, já descansara em Rio de Onor, à maneira dos antropólogos que por lá cheiriscavam. Deixa-nos um bom documento etnológico:

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Rio de Onor, 27 de Setembro [de 1946] – Ao cabo de oito dias de permanência num mundo destes, com sua língua própria, seus costumes e suas leis, nada escrevi sobre ele, nem sinto que venha a escrever grande coisa. Qualquer jornalista apressado, sem as sete horas de caminho que eu fiz sobre um macho para aqui chegar, faria melhor do que eu. Instalado num hotel de Bragança, com três informações e duas anedotas teria assunto para uma reportagem sensacional. Eu, íntimo e mudo, vejo a paisagem e as coisas, e fecho-me, como um fotógrafo que não tivesse papel para imprimir os negativos. A significação desta terra parece-me mais telúrica do que folclórica. Mais para meditar do que para descrever. Ao pé da seriedade e da convicção com que tudo se passa na alma desta gente, falar na vara do mando, nos cambitos, nas botas do concelho, é bom para brilhar em sociedade, como se o narrador acabasse de chegar de Taiti. Moldados na ideia de uma civilização única, esquecemo-nos de que há outras civilizações paralelas à nossa, com perfeições inatingidas por nós, mormente no domínio da ética. Ora viver no convívio destes semelhantes é mais uma lição de disciplina humana e de civismo que se aprende, do que uma revelação de pitoresco e de exótico. Morar alguns dias dentro de uma aldeia que não intriga, que não rouba, que tem do vizinho um conceito fraterno, e que não se embebeda porque é sábado mas por uma razão sagrada de celebração equinocial, é ficar ligado a uma dívida que não se paga nos jornais mas sim na ara da consciência.

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Ainda em Rio de Onor, no dia 28 de Setembro, escreve o poema “Regresso”, que encerra:

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Estou na origem do meu ser,

Primário como um Adão.

Que pena eu não me esquecer

De cantar esta emoção!

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O recorrente conflito da sabedoria, que é uma insatisfação, estraga momentos genesíacos do sujeito. A secura do planalto mirandês alegra-lhe também os olhos:

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Miranda do Douro, 3 de Agosto [de 1947] – Até que enfim! Mas não foi o menino Jesus da Cartolinha que vim ver, nem mesmo uma rua quinhentista tal e qual como a deixaram os pedreiros manuelinos. Foi o planalto transmontano, adusto, largo, arejado, guardado por esta severa sé de granito, erguida diante dos olhos castelhanos como a cruz dos crentes alçada diante da tentação de Satanás.

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Por estes meses, demora-se na região, derrotado pela natureza:

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Linha do Tua, 22 de Setembro [de 1947] – Este Portugal só se pode amar ou por razões instintivas de resignação de pássaro que nasce em ruim ninho, ou então por um devotamento intelectual ao mirrado, à fraga, ao nada onde é permitido sonhar tudo. Esta subida é o exemplo vivo do amor sem esperança. O rio arrastou toda a terra, desnudou todos os ossos, impossibilitou para a eternidade toda a forma de vida nestas escarpas. A legenda do Dante podia-se escrever em qualquer destas ravinas. E não sei que ternura, que confiança me sai da alma para olhar estas pedras com amor. Às vezes afigura-se-me que o homem não é tão animal como dizem. Que não se preocupa tanto com o penso como se supõe. Que também gosta da terra improdutiva, livre, rebelde, preguiçosa como um mendigo com as chagas ao sol.

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Vem de comboio, a caminho de Bragança. No dia seguinte, escreve:

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– Bragança nem é a domus municipalis, nem o museu, nem os judeus, nem o Estripão. É uma luz de palha madura em terra vermelha, com um céu muito alto e vazio. Certos quadros são assim, esquemáticos e sugestivos. Não conseguem convencer-nos da realidade das personagens centrais das cenas, do casario. A gente só vê os intervalos dessas figurações, a luz geral que as nimba, e o tecto protector que as cobre.

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Quatro anos depois, regressa para outro périplo e Diário VI, com três registos sobre um «castanheiro humano», um rio e o progresso. Por muito parca, note-se certa ironia: «Montesinho, 28 de Setembro de 1951 – Uma consulta ao João Gata, que é o castanheiro humano mais nodoso e velho desta comunidade. Está pronto. Mas tem uma linda morte. Mesmo por baixo do quarto onde agoniza, duas vacas tocam-lhe música celestial com as campainhas da coleira.» No dia seguinte: «Quintanilha, 29 de Setembro de 1951 – A história é como este ribeiro internacional, que assistiu a cenas monstruosas durante a guerra civil espanhola: o que diz é sempre da responsabilidade das águas passadas…» E seguinte: «Tua, 30 de Setembro de 1951 – O progresso muito pedra deixa ainda no seu caminho!»

Passa triénio e regressa, para se fundir com ciganos, «na poeira do transitório»:

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Salselas, Macedo de Cavaleiros, 7 de Outubro de 1954 – Ciganos. E mais uma vez a minha raiz humana estremeceu. São eles que me dão sempre a medida absoluta da liberdade que não tenho e por que suspiro. Anarquistas em espírito e corpo, lembram-me príncipes do nada, milionários do desinteresse, sacerdotes da preguiça, ampulhetas obstinadas onde o tempo não se escoa. Comem a podridão, vestem-se de absurdo, são marcianos na terra. E a vê-los caminhar na poeira do transitório, é a imagem do homem ideal que vejo passar, lírica e desdenhosa. (Diário VII, 1956)

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Devemos concluir, no entretempo, que estes momentos o repousam das fadigas da caça. Não é um turismo cultural, nem rural. No Diário VIII, isso subentende-se, mas também, por oposição, o «emporcalhado tempo» português que lhe coube. O chão que pisa distingue-se das cabeças da nação que tudo decidem. Escreve, em dias consecutivos:

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Lagoaça, 27 de Outubro de 1956 – Ando aqui a calcorrear semeadas, rilhado de vergonha. Calma e laboriosamente, a golpes de enxadão, numa paciência pelo menos igual à da natureza, as criaturas simples que se espalham pelo planalto vão lavrando a terra. À sua maneira, lutam por valores que procuro servir também. Mas que grandeza a deles, a escrever incansavelmente no livro da terra páginas infindáveis de suor anónimo, e que pequenez a minha, a lançar no papel meia dúzia de versos arquejantes e assinados!

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No seguinte: «Lagoaça, 28 de Outubro de 1956 – Mato-me a andar. Mas alguma vida limpa hei-de ter neste emporcalhado tempo português que me coube. E assim tenho-a. Os restolhos escovam-me os pés e a alma de quanta imundície se lhes colou em trinta anos de vasa nacional.»

À mesma aldeia volta no triénio empós, para lamentar as barragens. Um Torga conservador? Leia-se, em paralelo, o conto “A Barragem”, de Pedras Lavradas. Um novo Alexandre Herculano que protestou contra a introdução do caminho-de-ferro? É um aspecto interessante a desvelar: «Lagoaça, 29 de Outubro de 1959 – O Doiro entoirido pelas primeiras barragens. É como se na minha própria porta se formassem aneurismas.»

Só em 5 de Novembro de 1967 regressa à zona, agora a Moncorvo, para novas caçadas:

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– Mal a caçada acabou, pus-me a procurar no dicionário da memória uma palavra onde pudesse caber a serra do Reboredo, que calcorreei o dia inteiro. Queria guardar nela as emoções que senti, para as ter à disposição quando novamente me apetecessem algumas horas de violência e dispersão. Teria de ser negra, pesada, férrea, e ao mesmo tempo alta e circular, aberta a infinitos e serenos horizontes de luz doirada, reflectida dos restolhos ondulados. Mas não havia maneira de a encontrar. E quando desesperava, dei conta que tinha os óculos na testa, como os velhos tontos. Era Reboredo, mesmo.

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No ano seguinte, pisa o restolho de Mirandela:

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27 de Julho de 1968 – Não tenho asas de contemplativo. Os meus arrebatamentos processam-se ao nível do chão. Dante, no Purgatório, promete o castigo de Deus para os desatentos à beleza eterna do céu, canso de olhar a terra, e posso contar pelos dedos as horas que passei a namorar o firmamento. Gosto de ver uma noite estrelada, mas troco por qualquer seixo dos caminhos a mais cintilante jóia sidérea. Passei o dia feliz da vida a transitar de paisagens, e a extasiar-me diante de todas. Até que a tarde morreu. E agora, estendido no terraço do hotel, com a abóbada celeste a brilhar lá no alto, em vez de me perder, em mística ascensão, na constelada imensidade, deixo cair sonhadoramente as pálpebras, a antegozar na madrugada de amanhã o sol a espreguiçar-se nas restolheiras. (Diário X, 1968)

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Somente no pós-Abril a sua presença será notada em Bragança, no dia 1 de Maio de 1976:

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– Pareço um fiscal a percorrer a pátria. Passo por Foz Côa, e apresso-me a ir ver se a igreja manuelina ainda se aguenta nos alicerces; chego aqui, e subo ao castelo, entro na Domus Municipalis, visito o museu, de coração apertado, não as tenha o diabo tecido; amanhã, em Miranda, Deus sabe as desilusões que me esperam na rua da Costanilha. É que o Portugal que valia a pena, o Portugal original, o Portugal de rosto singular, está por um fio. Em cada terra resta apenas um vestígio. E são esses fragmentos de uma fisionomia própria que inventario incansavelmente. É com eles que os vindoiros poderão reconstituir a nação que já houve. Lineu partiu também de um simples osso.

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Em Miranda do Douro no dia seguinte, poemiza sobre o “Planalto”:

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Alto céu, alta luz, alta pureza.

Ascensão da granítica aspereza

Dos homens e do chão.

Guiada pela mão

Da fome insatisfeita,

A teimosa charrua da vontade

Lavra e semeia as fragas da planura.

Mas a grande colheita

É de serenidade:

A paz azul em cada criatura.

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Pouco depois, por interposta localidade, assoma Rio de Onor:

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Castro Laboreiro, 17 de Julho de 1976 – […] Foi aqui, em Vilarinho da Furna e em Rio de Onor que vi pela primeira vez ao natural criaturas de Deus, na sua plenitude livre e solidária. E – já que Vilarinho da Furna desapareceu do mapa, engolida por uma albufeira – é em Rio de Onor e Castro Laboreiro que o meu comunitarismo impenitente mergulha raízes. […] (Diário XII)

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O caçador solta-se em anos seguidos, com uma louvação à nossa paisagem:

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Izeda, 1 de Outubro de 1978 – Cá ando. Velho  mas ainda a cortar estevas a dente. Hei-de morrer assim, a abrir caminhos nos matagais da Vida. E para nunca chegar a clareira nenhuma…

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Meirinhos, Mogadouro, 4 de Novembro de 1979 – Só hoje, a subir e a descer as encostas do Sabor, ermos abissais por onde Deus Nosso Senhor nunca passou, e talvez por meus pecados passei eu, se me fez luz no espírito. Compreendi, finalmente, as reticências com que muitos forasteiros se referem à paisagem transmontana. Além da rudeza, temem-lhe a tirania. Entra nos olhos e não sai mais. (Diário XIII)

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No dia 11 de Março de 1993, em Coimbra, esse caçador da sua e nossa alma almoça com Jorge Amado: «Perdiz brava de Montesinho, posta mirandesa e tinto maduro do Doiro. Ementa a preceito, […].» De facto, o que mais pedir? Um pouco de humanidade, para acrescentar à ilusão da vida. Nesse processo, o Brasil foi decisivo.

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Torga e o Brasil

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O Brasil está diversamente representado no Diário de Miguel Torga, que aí passou a adolescência. Se esta pesa, há figuras e paisagens que se conjugam no olhar. De Érico Veríssimo (Diário I; 3-XII-1937; III, 19-V-1944) ao Jorge Amado de 1993, a galeria vai crescendo[12]. As duas últimas referências datam de 11-III e 24 de Julho deste ano. Além, o almoço tem «ementa a preceito, em homenagem à humanidade do escritor que na minha imaginação parece ter aliado harmonicamente, na vida e na obra, o calor da urbanidade baiana à grandeza de alma transmontana»: pertencer ao «reino maravilhoso» da franqueza e honradez é quanto nos define, transmontanos; aqui, lamenta-se «Matança a tiro de sete crianças que dormiam na escadaria de uma Igreja no Rio de Janeiro». As violentas contradições brasileiras são, porém, assinaladas desde A Criação do Mundo, servindo-se de personagens, situações e universos, e sintetizadas, com avanços programáticos, em Traço de União. Temas Portugueses e Brasileiros (1955; em Ensaios e Discursos, 2002). Em dois poemas tardios do Diário, intitulados “Brasil”, evoca-se este em síntese comovida: «Pátria de emigração, / […] // Achada na longínqua meninice, / Perdida na perdida juventude, / […]» (Diário VIII, 1959; 20-I-1956); ou: «Brasil onde vivi, Brasil onde penei, / Brasil dos meus assombros de menino: / Há quanto tempo já que te deixei, / Cais do lado de lá do meu destino!», (Diário  XI, 1973; 16-VI-1970). Com remissão, outrossim, para contos esparsos, procure-se entrever essa relação, que também é a construção de um autor, da sua personalidade cívica e literária. Em tese, pergunto, já: nasceuTorga no Brasil?

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Sem vocação sacerdotal, nem futuro numa lavoura de subsistência, empenha-se o pai para pagar a viagem atlântica ao adolescente, que vemos partir no final do Primeiro Dia de A Criação do Mundo, rumo a Lisboa; acompanhado pelo senhor Gomes, e de mala a abarrotar de parco enxoval, fumeiro e vinho, embarca para o Rio de Janeiro, deixando «uma saudade a chorar em cada coisa» (O Terceiro Dia; 2001: 249).

Retrato na mão, espera o tio fazendeiro: apavorado com tanta sujidade e falta de gosto, logo o leva a uma loja, para mudar de terno, e a chapelaria, para trocar de chapéu. Da Rua do Ouvidor a périplo carioca, para turista ver – Copacabana, Botafogo, «além Niterói, lá adiante a Igreja da Candelária, aquela a Avenida do Mangue» (p. 73) –, é um atordoamento, porque a noite no Hotel Globo fora passada em branco, tanta era a luz, tanto o barulho lá fora. Esse percurso será feito inversamente cinco anos depois, a abrir o Terceiro Dia. E, de algum modo, retomado em 1954, já com um estatuto diferente.

Da Leopoldina Railawy, segue o comboio por Petróplis, Entre-Rios, Recreio, Cisneiros. E vem a desmesura: «As serras, os rios e as florestas eram de tal maneira que não cabiam dentro dos olhos.» (p. 73)

Parelhas de bois com o preto Anacleto puxam-no até à fazenda, onde a recepção familiar é fria. Indelicados, não apreciam vinho de cem anos, toalhas de linho, salpicões, o melhor que os pobres sabem dar. Mal entende o que lhe dizem. A tia, em particular, será sua persistente adversária. É uma figura soberba de grotesco, que também tinge os outros. O tio, opressor e tirânico, com laivos circunstanciais de respeito, domina o entrecho, e, quando também ele fizer o caminho de volta, ao lado da estranha galeria familiar onde sobressai a mulher frufrulhante de dentes postiços, a sua prepotência a bordo impõe ao narrador a «lúcida determinação irrevogável» de nunca mais aceitar «os opressores da consciência humana» (p. 289). Era um programa de vida que irrompera daquele cadinho brasileiro.

Neste quadro, aclimata-se, ora em trabalhos leves, ora na extensão territorial do novo mundo, que também é o de uma nova linguagem social e de outros vocábulos. Almas penadas e lobisomens coexistem nesse imaginário, enquanto a médium Inês e seus responsos põem os vivos em diálogo com os mortos; imagem do terror, ele esconde-se nas saias da criada Joana, até o tio descobrir e o descompor. É ainda um tempo de medo.

O tio, entretanto, vende bem a fazenda e compra, «por dez-réis de mel coado» (p. 81), outra maior – Fazenda de Santa Cruz −, na Zona da Mata. Comboio até Sousa Pais, e carro de bois. Quais novos pioneiros, há muito a desbravar. E, levantando cedo, do nascer ao pôr do Sol, vá de mungir vacas, levar cavalos ao pasto, tratar dos porcos, etc., enquanto espera o correio em Sousa Pais e, à noite, faz a escrita da casa. Faz-se homem, também, em curtos episódios de uma rotina vigiada, enquanto o contágio da natureza excita os sentidos. Há uma cena premonitória, em que ajuda novilha a parir e sente o calor daquele corpo. Esta ‘Andorinha’, com final feliz, lembra emoções de “Um Filho”, em Contos da Montanha.

Deslumbramento físico e paisagístico, em «recanto do paraíso», tanta grandeza «amesquinhava-se nas lunetas de minha tia» (p. 85): «E eu sequioso de ternura, sem a receber, comido de desejos, sem os satisfazer, moído de trabalho, sem uma palavra de aplauso.» (p. 90)

As fugas eróticas a Sousa Pais minoravam o cerco. E, aos 16 anos, passa a frequentar como externo o Ginásio de Ribeirão, seja, o Colégio Leopoldinense: Jorge, libertino e gatuno, filho do senhorio, é o principal companheiro; mas há uma colegas, amorios, a descoberta do cinema americano, muitos versos inspirados na Antologia Brasileira de Eugénio Werneck, onde conhece Casimiro de Abreu, Silva Jardim, Machado de Assis – a bordo, no regresso, lê Quincas Borba. Pelo meio, tem a caça – e aí deve ter nascido a paixão do inveterado caçador que foi o doutor Adolfo Rocha.

Uma dessas paixões exacerbadas, até ao adeus final, é Dina: após trânsito de férias pela Morro Velho, «A sua partida foi a viuvez da fazenda. […] Tudo quanto era humanidade ausentara-se com a Dina.» (p. 118) Os desgostos calejam-no; e nem rejubila com o anunciado regresso, quando o tio, num momento de proximidade, lho anuncia, e a disposição de, por tão pouco lhe pagar de jorna, lhe subsidiar um curso universitário. Tanta contrariedade e desgosto formaram uma cabeça. À imagem do rio paralelo ao comboio de volta a Leopoldina Railway, impõe-se ser «livre, forte e caudaloso» (p. 135), voto que fecha o Segundo Dia. E, já no Hotel Globo, sem que a beleza de Guanabara lhe faça «transbordar a taça dos sentidos», abre o Terceiro Dia com decorrente propósito: «O mundo pedia-me lucidez antes de cada deslumbramento. Se novamente o táxi atropelasse um pobre transeunte, e o motorista, para evitar complicações, o deixasse também abandonado no meio da rua, eu saberia opor à desumanidade pelo menos um protesto.» (p. 139)

Eis um homem diferente que o Brasil construíra. Como não ver isso, no que é uma das melhores homenagens de um enorme escritor a país que nele instilou a consciência da humanidade?

Intervalemos, aqui, o Diário, no que a essa experiência respeita.

Assistindo a um filme sobre Bornéo, regressa a floresta tropical e o que para ele significou «toda a minha adolescência a romper no húmus duma fazenda no Brasil». Esclarece: «Foi um fermentar que nunca mais acabou em mim, porque se deu no meu corpo dos ossos ao coração. Nada que se possa dizer em palavras, porque não tem expressão condigna a quentura deste lume que recebi duma terra incendiada de vida, de força e de liberdade.» (Diário I; 30-X-1938)

Quando, pois, a 6 de Agosto de 1954, chega ao Rio de Janeiro, transformam-se «os impulsos sentimentais em congeminações abstractas» (Diário VII; 6-VIII-1954). Agora, o confronto é com outra realidade, um presente que urge medir e não nos protege. Aí, começa a revisão do futuro, desde logo, no elogio do Negro, cuja dignificação «é um triunfo no plano moral e no estético» (8-VII). Já em São Paulo, a cidade pernalta cria uma curiosa inversão, que também é metodologia torguiana do céu «invertido», ou aquele propósito de ser «Uma estrela no chão»: «O homem deixa de olhar deslumbrado para cima, e passa a olhar maravilhado para baixo.» (9-VII)

A relação infantil com o papão – transferida para Deus, tio ou ditador – foi resolvida. Grato ao «colosso urbano» que é São Paulo, conclui: «Tão feroz, tão grande e tentacular, e não me devorou!» (15-VIII)

Em O Sexto Dia, conta como recebeu «um convite para participar num colóquio internacional de escritores que se realizava em S. Paulo, integrado nas comemorações do centenário da fundação da cidade» (p. 508). Convém dizer que Manuel da Nóbrega, «que funda São Paulo no planalto do Brasil» (Diário XVI; 27-VI-1991), era um ilustre nascido de Sanfins do Douro, comprovinciano de Diogo Cão, Fernão de Magalhães, Carvalho de Araújo, Sarmento Rodrigues e Torga… Justifica: «Sobretudo, tentava-me a perspectiva de rever o Brasil da meninice. O rio dos meus deslumbramentos e aflições, a Morro velho, o Ginásio, as várias estações de um calvário que dia a dia se esfumava na lembrança. Minha tia tinha morrido há muito, de mais [sic] a mais.»

Acompanhado, agora, por Jeanne (em que disfarça Andrée Crabbé Rocha) e já não em porão, «mas na primeira dum luxuoso barco moderno» (p. 509), aí vai ele, «a refazer o caminho do passado na pele do rapazinho de outrora», em si conjugando, e impelindo «para um abraço perpétuo as duas comunidades», a «pequena terra lusa» e a «grande pátria irmã». À chegada, «nenhum desconhecido tinha desta vez na mão um retrato meu identificador e cada voz que ouvia não disfarçava uma recriminação» (p. 510). Claro que o ditador Salazar também desembarcara, na figura de certo comendador…

A caminho de São Paulo, «foi a volúpia da natureza tropical a acordar progressivamente nos meus sentidos» (p. 512). Desperta o descritivista: «Nenhuma impressão de outrora se perdera. […] O Brasil tatuara-se realmente na minha alma como uma tinta indelével.»

Assim, no Congresso Internacional de Escritores, em Agosto de 1954, em São Paulo – desse 12 de Agosto aniversarial data poema no Diário VII (1956) –, os seus reparos (“A América vista pela Europa”) à comunicação de Roger Bastide assentam numa verdade que vai para lá da cultura e dos livros. Qual «Pêro Vaz de Caminha de Agarez», recebe palmas de «polida incompreensão» (p. 513). Apresentara-se, entretanto:

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[…] rapazinho de treze anos que, ao cabo de descobertas várias – um mar interminável que punha uma barreira de desespero entre ele e o que ficava para trás, um navio que parecia um presídio de galerianos, e peixes que voavam como pintassilgos –, desembarcou um dia nesta terra. Que andou por ela fora ao deus-dará, perdido, perplexo, aterrado, a ver morrer os seus deuses a cada instante, a sentir o gosto modificar-se-lhe, a não poder avaliar as coisas com o estalão do sistema métrico que aprendera na escola. Que chorou, gemeu, penou, até que o instinto se adaptou e lhe permitiu comportar-se com mais economia emotiva. E que, então, pôde esquecer a sorna cumplicidade vegetal com a fauna hostil, os lobisomens que o perseguiram, os sacos de café que lhe derrearam os ombros e descobrira íntima significação dum húmus gordo e fecundo que tinha o condão de tudo integrar no seu calor.» (Traço de União, em Ensaios e Discursos, 2002: 113)

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Na conferência sobre “O Drama do Emigrante Português”, que, uma semana depois, em 19 de Agosto, faz no Real Gabinete, no Rio de Janeiro – descoroçoado por os seus patrícios não conhecerem o Brasil «das roças e seivas da minha infância» (A Criação do Mundo, p. 514) –, critica o seu Camilo Castelo Branco, tal a «crueldade e leviandade» ao «popularizar uma caricatura que é uma ofensa» (Ensaios e Discursos, p. 149), referindo-se à imagem do ‘brasileiro’ de torna-viagem, algo nobilitado por Eça e Luís de Magalhães, quando havia melhores exemplos; e de novo se vê aos 13 anos, trazendo, agora, na bagagem um grande amor pelo Brasil da sua infância infeliz, «justamente por ele ser o arcano de recalcadas esperanças, de insatisfeitos desejos, de sonhos, de emoções e paixões que a lembrança revive quando furtivamente se exila» (p. 150). Ao espírito do lugar acresce, desta feita, um tempo, que é de formação – «cinco anos de contraditórias sensações», diz a seguir –, e, por isso, amorosamente evocado, “Pátria de emigração, / […] / Na doirada moldura da lembrança”, como reza o poema “Brasil” do Diário VIII (1959; 20-I-1957).

Aproveita um Agosto politicamente agitado para roteiro sentimental: Ouro Preto, Sabará e Congonhas do Campo; saúda o Aleijadinho, o Tomaz Gonzaga da Antologia Werneck, e, de visita à Morro Velho, reencontra um antigo moleque, o preto Virgolino, que mudara, tal como mudara Ribeirão, o Ginásio, tudo. O tio octogenário não perdera a «autoridade de outrora» – Torga ri por dentro – e elogia Salazar: «Desta vez não me ri, nem por dentro, nem por fora.» (A Criação do Mundo, p. 516)

Esses dias de 1954 são particularizados no Diário VII: no Rio, a ausência de «pruridos rácicos ou aristocráticos» levam-no a concluir que o Brasil é, por natureza, «uma pátria de democratas» (18-VIII). Sai deslumbrado de Congonhas do Campo; como um fantasma, entre memórias fantasmáticas, de Ouro Preto. O «espírito nativo emancipado» (22-VIII) que encontrara em São Paulo só o revê em Belo Horizonte. Cumulando a viagem, a Baía conjuga o que é uno e diverso, até a reflexão de 4 de Setembro, em que se sugere, não falar do tandem Portugal-Brasil, mas de Europa-Brasil… Por data de 7-II-1962, em que regista «A dolorosa notícia da morte de Portinari» (Diário IX), e coloca a sua arte a par do deslumbramento «que sentira outrora a ler Os Sertões de Euclides da Cunha», refazemos os lugares de 1954.

Ora – e sem, por isso, morrer –, a sua «unidade telúrica desintegrou-se» (Ensaios e Discursos, p. 151), tornando-o maior, sempre a correr ao outro, e a outros sítios, numa definição de limites matricial que diz em terceira pessoa: «A aldeia da alta lombada onde nasceu e o rancho sertanejo onde morou são estremas dos sete palmos da sua humanidade.» (p. 155)

Humanidade: cá está. Eis como, e por onde, tudo começa: o Brasil é essa extensão natural de uma alma (antes, ainda, ou a par, do díptico peninsular, que é uma construção política do sujeito maduro), «Cais do lado de lá do meu destino!», dirá em 16-VI-1970, no segundo poema intitulado “Brasil” (Diário XI), e, de facto, uma explicação para as suas raízes literárias. Em “Carta a Ribeiro Couto” – este retorna na “Elegia a Ribeiro Couto” (Diário IX; 31-V-1963)[13] –, lá vem parte da explicação: «É um fraco, esta paixão pelo telúrico. Mas tenho-a, e a tua terra é o telúrico em corpo inteiro. Gostei sempre de tudo quanto põe os homens à prova. E o Brasil é isso.» (Ensaios e Discursos, p. 175)

É um pouco mais: no regresso de 1954, aporta em S. Salvador da Baía, onde reencontra «o Portugal colonial na sua expressão exemplar: a miscigenação total do senhor e do escravo, a Europa, a África e a América misturadas no sangue, nas crenças, nos ritmos e no paladar, a seiva tropical a vivificar as raízes cansadas da arte reinol… […] tinha valido a pena aquele milagre de procura, achamento e comunhão. Três continentes estavam ali unidos por um vincilho de amor. (A Criação do Mundo, p. 519)

Tanta certeza  mais reforça o abalo que sentiu ao visitar, em 1973, o Portugal africano. Num primeiro momento, aterrar em Luanda era como desembarcar no Rio de Janeiro; mas logo se desmorona a hipótese de «um segundo Brasil» (p. 542) e, por mais que memore Ouro Preto ou Salvador, a verdade é que o génio perdera a favor do egoísmo. Pior, era na língua portuguesa que os nacionalistas condenavam Portugal. Pior é como quem diz: estando em Lourenço Marques, recorda episódio – também narrado em A Criação do Mundo – do congresso paulista de 1954 e como um brasileiro «apostrofava a colonização portuguesa, que desejaria mil vezes trocada pela holandesa» (Diário XIII; 8-VI-1973). Mas apostrofava, felizmente para Torga, não em flamengo, mas em português… Apesar do que, em África, «tínhamos perdido o norte da nossa capacidade civilizadora» (A Criação do Mundo, p. 548). E, no quadro da guerra civil angolana, exclamará, em 20-II-1993 (Diário XVI): «Não realizámos ali, infelizmente, o milagre brasileiro da fraternidade racional e nacional.»

Só na Ilha de Moçambique, tal o entrançado de culturas, havia de rever o Brasil[14].

outra explicação assenta no seu fervor de transmontano, caracterizado como «Sísifo teimoso, condenado a carregar fragas toda a vida» (“Portugal”, Ensaios e Discursos, p. 166).

O ensaísmo apressado reduziu-se à explicação do louvor à terra-mãe; e Guilhermino César[15], escrevendo onze anos depois dessa profissão de fé torguiana, desgosta do termo «telurismo», que, acrescenta, «falseia, nega o sentido exacto de Torga», se, como ele julga, nos atemos a conceitos de «desordem» ou «determinismo cósmico».

É desconhecer esse intérmino e intrépido desafio com que sísifos ou anteus (Anteu alimentava-se da terra) se confrontam diariamente, em ordem a uma existência construída por cada um. É ignorar, como outros farão, que, se os deuses morreram, na própria confissão autoral, urgia matar, de futuro, deuses-hidras que irrompessem.

É esse o projecto de regresso, a bordo da vida; e sempre a bordo se havia de manter Torga, na «lúcida determinação irrevogável» de combater prepotentes, de protestar contra a desumanidade.

Guilhermino César tem o mérito, porém, de propor uma evidência: «Deve muito à experiência brasileira.» E vá de falar da «dictomia [por dicotomia] sensorial» que amalgama a Zona da Mata, Minas Gerais, e São Martinho de Anta, com que se constrói um «visual superior» parceiro de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa.

Quando reincidir na afirmação ibérica, a tríade resumir-se-á no poema “António Vieira”, «Filho peninsular e tropical», que, «No Quinto Império que sonhou, sonhava / O homem lusitano / À medida do mundo» (Poemas Ibéricos). E esse vasto mundo, estampado «em qualquer Brasil», assomava, já, por um lado, em conferência de 1948 sobre “Teixeira de Pascoaes” – «Nascemos aqui, mas nascemos desterrados, reais ou potenciais, e sempre com parte do sangue no exílio. Todos temos um irmão, um filho, um primo ou a família inteira em qualquer Brasil[16].» – como, por outro, se fixa de vez na extraordinária conferência “Trás-os-Montes no Brasil”, lida no Centro Transmontano de São Paulo e no do Rio, em 14 e 16-VIII-1954, onde surge o célebre «O universal é o local sem paredes». O curioso e paradoxal é que essa «realidade sem muros» (Ensaios e Discursos, p. 126), paralela a «qualquer Brasil», era a região com mais muros e muretes: Trás-os-Montes, naturalmente…

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Caracterização mais demorada dos dois países em relação, com leitura actualizada segundo a clave passado / velhos e futuro / crianças, temos em páginas de teor diferente: no Diário VI, 16-I-1953, e XV, 10-VI-1989, orgulhando-se do seu «segundo berço», e de Caminha, Vieira, Guimarães Rosa, Machado de Assis; a espaços, em A Criação do Mundo; sistematicamente, em Traço de União.

“O Brasil”, título do primeiro ensaio aqui incluído, é juventude, confiança, impetuosidade social, «mística e maravilhosa comunhão de sangues» (Ensaios e Discursos, p. 94), cheio de colorido, multiplicidade, graça, originalidade, sem remorsos, enquanto o espírito português se resguarda em «burel, a chorar por dentro» (p. 95). Na sua «cósmica virgindade», o Brasileiro, definido como «Um português optimista» (p. 96), percebe que tudo é provisório, e, daí, mostrar-se informal, sem cara de exéquias. Modelado por essa capacidade de tudo assimilar, eis o Mulato.

Num ano (1951) de eleições em Portugal, em que os nossos países permutavam «sono e salamaleques», as “Palavras a José Lins do Rego”, que acompanhava equipa do Flamengo[17], reconduzem Torga à sua meninice e ao «feérico deslumbramento» (p. 104) que, no outro lado, espera os portugueses.

O Brasileiro, diz no Diário IX, 11-V-1960, é «um ser exótico, descontraído, barroco, malicioso e cordial, indolente e de reflexos prontos, ávido de ver e de provar, aberto a todos os ventos da vida e, suprema bênção do destino, nimbado do encanto de lhe escorrer ainda das virtudes e dos defeitos o líquido amniótico dos recém-nascidos». Os derradeiros comentários no Diário XVI reiteram estas ideias, em prosa que, por vezes, a si se decalca. A exoneração do Presidente Color de Mello, «por indecente e má figura», se não esconde a vergonha dos que «amam aquela incomensurável pátria, como eu, que a trago desde criança no coração», transforma-se em crença no futuro. O país há-de ultrapassar o grotesco: «É uma terra ainda genesíaca, virginal, quente, a ressumar saúde, generosidade e alegria, onde a catarse colectiva recorrente de um carnaval despido e fantasista, sem máscaras e sem ódios fratricidas, renova permanentemente o esquecimento e a esperança.» (28-IX-1992)

Por tudo isso, entende Torga que a presença de Portugal na União Europeia, de que se mostrou contumaz adversário, não pode danar às relações com o Brasil. Terminemos esta parte com afectuosa citação: «Quem contratou a submissão nacional às ordens de Bruxelas, esqueceu-se de especificar que a carta de Pero Vaz de Caminha de quinhentos é um juramento português de amor e fidelidade eternos à Terra de Santa Cruz e à sua gente.» (6-II-1993)

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Um contista exemplar

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Considerada A Criação do Mundo, em que o ficcionista labora sobre matéria pessoal, mais intensa nos dois primeiros dias – cujo volume, de 1937, se apresenta fundamental nos quadros da infância e da adolescência, e, arrisco, antecipa preocupações do neo-realismo, custe embora a muitos ouvir esta heresia crítica –, os anos 40 afirmam o contista, recusadas, entretanto, as colectâneas de 1931 e 1934, Pão Ázimo e A Terceira Voz, respectivamente.

Entre Bichos (1940) e Pedras Lavadas (1951), temos os decisivos Contos da Montanha (1941; note-se que o título começa por ser Montanha, assumindo o actual em 1955, no Rio de Janeiro, e, nem por acaso, além do marido ‘brasileiro’ de Maria Lionça, o Brasil, que «fazia parte da cosmogonia de Galafura» [p. 92], multiplica-se[18]) e Novos Contos da Montanha (1944), intervalados por Rua (1942). E, para reforçar o arquétipo de Tellus, aí está também a Montanha do romance Vindima (1945; acarear com “A Vindima”, de Contos da Montanha), na primeira e última páginas, em maiúscula, e riqueza de diálogos, cujos localismos contaminam o discurso do narrador. O prefácio autoral à edição inglesa, reproduzido no Diário XV, 25-III-1988, resume o propósito: «Cingido à realidade humana do momento, romanceei um Doiro atribulado, de classes, injustiças, suor e miséria. E esse Doiro, felizmente, está em vias de mudar. […] A recordação do seu martírio será uma lição para senhores e servos.»

Se a montanha magnifica uma teoria do romance, que deixo aos especialistas[19], já a imagem da colina, ou dos montes saltitantes que vencemos facilmente, serve à novela, neste caso, O Senhor Ventura (1943). Numa centena de páginas, qual moderno Fernão Mendes Pinto entre Alentejo e mares da China, dá-se-nos o texto mais nervoso de Torga, de ritmo imparável, mas com alguns inconvenientes: falta de densidade e cenários de papel. Pesa o determinismo familiar; como Torga tutelado por um senhor Gomes, na ida para o Brasil, o filho do herói regressa à pátria e condição paternas acompanhado por instância consular. A leitura de um enamoramento português, ingénuo e fatal, é de séculos revolutos; e, por isso, o melhor está na indelével amizade do Alentejano e Minhoto de fim trágico, nos lances de pirataria e coragem, que tanto lembram o António de Faria da Peregrinação, como, em certas curvas, um destemido Malhadinhas… Desconfio, entretanto, que Torga se sobressaltara à leitura de novela de antigo companheiro de revistas, saída no ano anterior – donde, deixar a pergunta: qual a importância, aqui, de O Barão, de Branquinho da Fonseca?

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Vamos ao contista de estalo. São 94 ficções curtas e algumas obras-primas.

Se a cidade – Coimbra – está em Rua e em “A Identificação”, de Pedras Lavradas, e abre “Lopo” – Vila Real –, de Novos Contos da Montanha, é evidente que é a Montanha, maiúscula também na primeira linha do “Prefácio à segunda edição” (1945) destes, o «sítio onde medram as raízes» (2002: 331) da contística. Pelos baixos e altos, da casa à ermida, nas diversas paletas do dia, da noite e das estações, acontecem os casos. Eis a deusa tutelar.

A datação histórica é imprecisa, e só por milagre temos 1896 em “O Estrela e a Mulher (Rua) ou, em “Requiem” (Pedras Lavradas), refugiado da guerra – espanhola, presume-se – que atravessa a fronteira. Reina, pois, o intemporal, como grandeza humana e como sugerindo que esse universo está fora da ampulheta nacional.

Junte-se a fácil presentificação de espaços – emergindo de enunciação em formas de passado («Galafura, vista da terra chã, parece o talefe do mundo.», Contos, 2002: 87) –, pinceladas breves, mas de tonalidades suspensivas, diálogos inultrapassáveis colados à pele da personagem, a verosimilhança de acontecidos, e resta-nos conhecer figuras espantosas, a caução de um dicionário provincial, formas de ser em terras por onde a chamada civilização não passou, a começar pelo ensino das primeiras letras… Donde, reconhecer-se o nosso Autor, ao arrepio da mestrança neo-realista, «cronista de um mundo que nem me pode ler» (p. 332).

Em tanta prosa, o ensino primário limita-se a duas referências: quando, naquele conto, vemos «professora de Guiães que passava de cadeirinha, empoleirada na burra do Amarante» (p. 384), e quando, no seguinte, “O Sésamo” – um dos melhores –, se confrontam três realidades: «Em Urros, ao lado da instrução da escola e da igreja, a primeira dada a palmatoadas pelo mestre e a segunda a bofetões pelo prior, havia a do Raul, gratuita e pacífica, ministrada numa voz quente e húmida, […].» (p. 387)

O traço comunitário, igualmente fundado na leitura pública, era uma realidade sociológica. A imagem do padre, contudo, cresce no fervor destas linhas: é presença quase constante, conselheiro, justo, bem-disposto e amigo; encerra os Novos Contos da Montanha como parteiro jubiloso, suprindo “O Senhor”, que tão distraído andou daquele chão e de Seus filhos, servos que fossem – pois lá diz, desprezivo para o corvo, «o meu servo Vicente» (p. 77). Já o médico, regularmente chamado, prima pela ausência ou só chega no capítulo da morte, saindo antes do estertor final – se descontarmos “A Consulta”, de Pedras Lavradas. Hipótese de leitura abrangente é olharmos à alma e à fisiologia de cada um. Domina esta; mas, quando aquela se impõe, a grandeza dos heróis torna os contos mais luminosos.

Convém perceber, de entrada, que todos somos bichos. No volume com este nome, aliás, não há só animais. E o ponto de vista animal satura-se de humano, e vice-versa: o cão “Nero” saboreia os lençóis; o pai de feto quase a perder-se chegara-se a “Madalena” «com olhinhos de carneiro» (p. 30) e “Um Filho” de sorte diferente saltava «como um cabrito» (p. 123). Satura-se, mesmo, da sua mundividência: assim, a propósito de frangos na órbita do galo “Tenório”, lê-se que «a formiga tinha catarro» (p. 50). Já no domínio da trama, “O Senhor Nicolau”, entomologista, transforma-se em insecto. Esta comunhão dos seres, também um processo discursivo, acompanhado de registos sensacionistas (ver as hipálages palpitantes na “Cegarrega” da cigarra), é fundamental em Torga. E talvez seja bom lembrar excerto do Diário X, ao reflectir sobre as normas de conduta civilizacionais, de que faz galeria extensa em estado bárbaro, ainda embrionário, que é o dos contos:

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Bárbaras a princípio, adoçadas pouco a pouco, civilizadas por fim, é quase inconcebível que elas sejam dispensáveis algum dia. Sempre haverá prevaricadores no mundo, […]. Bichos que fomos, bichos continuamos na fundura das funduras. Nem Cristo fugiu à tentação do demónio que morava dentro dele. (12-IX-1967)

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Ora, nesse quadro rude de invencíveis prevaricadores, em que o corpo é o nosso reino, o ser só vence realmente quando deste se solta. É o caso dos inúmeros nascituros que povoam as páginas; que respondem, afinal, ao tema doloroso, e maior, da quase centúria de contos, e justificam o agonismo torguiano: a morte. Esta dá-se, contudo, por múltiplas razões: ora violenta, por homicídio, individual ou colectivo (“O Leproso”, Novos Contos da Montanha); por suicídio, variamente consumado; por doença, na sequência de um crime, às vezes, só tentado (“Um Roubo”); por deficiência física, caso do cego de “A Barragem” (Pedras Lavradas), que se afoga; por um infeliz acaso, involuntariamente metido no barulho (“O Cavaquinho”, Contos da Montanha); pela ordem natural das coisas, por velhice, como no fim sereno e exemplar de “Nero”, de “Morgado”, o macho, de “Miura”, o toiro – a relacionar com “A Glória”, em Pedras Lavradas –, ou do tio Arruda, amigo do sapo “Bambo”; enfim, por alguma epidemia (“Renovo”, Novos Contos da Montanha)[20]. Capaz de quadros sem arestas, como serão alguns instantâneos, igualmente breves, do conjunto de 1951 – não isentos de cúmplice envenenamento, em “Segredo”, ou de crimes frios, em “Cabra-Cega” –, salientaria a artística pagela que é “Jesus” (Bichos), a lembrar aquele “Segredo” do Diário VII:

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Sei um ninho.

E o ninho tem um ovo.

E o ovo, redondinho,

Tem lá dentro um passarinho

Novo.

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Contos da Montanha é, quanto a mim, o melhor Torga. Cito do Diário VI, onde, para uso editorial e ensaístico, é questão da «autocrítica demolidora», das «várias versões do mesmo assunto» e da informação de que «é nos testamentos mais recentes que ficam as minhas últimas vontades». Antes, mostra-se noutro corpo a corpo:

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Mais um velho livro meu, a Montanha, que desfiz e escrevi de novo. Três meses a lutar com ele como se fosse um inimigo. Aterrados, os comparsas daquele mundo rudimentar cingiam a estamenha ao corpo, numa defesa instintiva. Mas eu pegava-lhes pelas abas do casaco, puxava, rasgava, destruía sem dó nem piedade, numa raiva de autor culpado, envergonhado, desiludido. Enfurecia-me sobretudo a certeza de que nunca os poderia aniquilar de vez. Toscos e obstinados, mesmo aos bocados continuariam a existir. (16-III-1953)

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“A Maria Lionça”, se tem duas mortes à perna, é um conto de personagem, e, quando assim é – seja, fora da anedota –, os bichos entram no reino, já não do seu corpo, mas da dignidade. O comportamento de Maria Lionça salva uma comunidade. Como o padre parteiro ou o Menino Jesus salvam Deus. E “O Cavaquinho” ilustra aos olhos do filho um pai assassinado.

A par da violência desembocando em morte – mas não forçosamente: da inimizade também sai coração generoso (“Inimigas”); e outro filho salva o pai do abafador, “O Alma-Grande” (Novos Contos da Montanha), também conto de personagem, que mostra como se vira o prego ao destino, além de antecipar em décadas o debate sobre a eutanásia… –, a par dessa violência, o engano é assunto igualmente forte, não raro, com final trágico. Mas interessa enquanto relação social, no caso, sob forma de adultério feminino, o que, no melhor dos casos, entreabre para o exclusivismo sobre os filhos assumido por “Mariana”.

Dos Novos Contos da Montanha falou Francisco Cota Fagundes «como ciclo de contos regionais»[21]. Não só: lugares, personagens, tipos, figurantes e actividades – agrícolas, festivas, de lazer e aprovisionamento (a caça, p. ex.) – retornam noutras colectâneas e unificam, de facto, esse rosto pigmentado de ficção.

Venho lendo cada vez menos em Torga «o apelo da transcendência (discurso teológico)», nos termos de Fernão de Magalhães Gonçalves[22]. Aceito, já lugares consensuais, as outras duas componentes, «o fascínio telúrico (discurso cósmico) e o imperativo da liberdade (discurso sociológico)». Mas prefiro vê-lo no seu perfazer-se, de quem traz o Céu ao chão, em prisões de ética, sem fascínio pelo que tanto nos custa no dia-a-dia, se não formos meros turistas de Trás-os-Montes e da literatura.

Adoçados pelos tempos modernos, normalizados, é já difícil encontrar a matéria dessa literatura. Não porque a escola se impôs; mas porque venceu a desertificação. No entretempo, pode a barreira da linguagem desanimar alguns, mesmo na poesia, no teatro, no diário, no ensaísmo e demais ficção. E, quanto a oficiais do ramo, raros praticam, hoje, essa ficção das raízes. Discípulos de Trindade Coelho, João de Araújo Correia e Miguel Torga, cito-me entre Bento da Cruz, Nuno Nozelos, A. M. Pires Cabral, alguns mais. Pergunto-me como ler as manhãs encarambinadas, as noites luporinas desta prosa, quando nunca se foi manhã cedo para olga ou cortinha, nem se teve o vento a entrar pelas frinchas, quase deitando abaixo os caibros da alma. Mas, ainda aí, mesmo em português, não será toda a leitura esse «palmo de ilusão» que se acrescenta «ao meu tamanho» e, assim, uma tradução de humanidade?

[1] Ou dez, porquanto as Publicações Dom Quixote reduziram o Diário a 2 volumes (1999, retomando a Coimbra Editora, 1995) e a poesia contém-se em um volume. No Círculo de Leitores, em 2001: Antologia PoéticaA Criação do MundoDiário, 4 vols.; O Senhor VenturaVindima; em 2002: Poesia Completa IIITeatroContosEnsaios e Discursos.

[2] «Oggi scrittori ritenuti classsici solo una ventina di anni fa, non sono più letti, hano sopportato male il giudizio del tempo, quanto meno del nostro tempo. Sono invecchiati troppo in fretta. Sono per esempio i casi di Vergilio Ferreira, Miguel Torga, David Mourão-Ferreira.» António Fournier, ed., Lusitania Express. 20 Storie per un Film Portoghese, Villa San Secondo (Asti), Scrittura Pura Editore, 2006: 206.

[3] Outros antologiaram Coimbra Vista por Miguel Torga (1991), extractos relativos a Terras de Bouro (1996), “Expressões da Ibéria no Diário” de 1950 a 1989 (Sara Reis da Silva, A Identidade Ibérica de Miguel Torga, Cascais, Principia, 2002: 67-73); etc. Dissertação académica, pedia-se bem mais a Maria de Fátima Medeiros, A Luso-Brasilidade na Obra de Miguel Torga, Ponta Delgada, Univ. dos Açores, 1997. Para visão geral, Isabel Vaz Ponce de Leão, A Obrigação, a Devoção e a Maceração (O Diário de Miguel Torga), Lisboa, INCM, 2005, título a partir de notação autoral, ou seja, medicina, literatura, política. Já aqui dera, em 2003, O Essencial sobre Miguel Torga. Para a concepção torguiana da diarística, ver José Romera Castillo, “Fragmentaridad diarística: sobre Miguel Torga”, Forma Breve, 4. O Fragmento, Universidade de Aveiro, 2006: 107-124.

[4] “A paz possível é não ter nenhuma”, em Francisco Cota Fagundes, org., “Sou Um Homem de Granito”: Miguel Torga e Seu Compromisso, Lisboa, Salamandra, 1997: 91.

[5] «Já não tens salvação, disse Noé; / Tenho a barca lotada e Deus não dorme… // Informe / Vinha subindo a maré… // Era parar ali; mas não parei; / Atirei-me brutal a bracejar / No mar / Onde à força naufraguei… // Deus olhava de cima boquiaberto; / E o mundo pobre morria / Vendo a minha rebeldia / Perto / Da sua própria agonia…»

A propósito de emissão radiofónica de “Vicente”, escreveu no Diário XII, 6-XI-1974: «Meia hora de sofrimento e de perplexidade, a sentir o texto como que erguido contra mim, autónomo, poderoso na sua independência. Aquele corvo, que eu quis concebido à imagem e semelhança da minha rebeldia, de tal modo se ergueu contra o princípio da autoridade que, coerentemente, acabou por dizer não ao próprio autor.»

[6] Apesar de algumas variantes nas histórias que dele se contam, interessa saber que Orfeu é um músico por excelência, tangendo lira ou cítara, com que apazigua tempestades, encanta plantas, animais, homens e os próprios deuses. Sua mulher, Eurídice (ou Eurydice), que fugia de um importuno, foi morta por uma serpente e caiu no inferno. Orfeu, na sua mágica melodia, consegue que os deuses lha devolvam, mas impondo uma condição: não pode olhá-la enquanto Eurídice não chegar à luz do dia. Mas Orfeu duvida; e, a meio do caminho, não resiste, e olha para trás: a mulher desaparece para sempre. A sua arte vira lamento e acaba os dias cortejado por mulheres que nunca desejara. Quanto à sua simbólica, entre sedutor e vaidoso, mas, também, lutador e exemplo de quem persegue um ideal, vêm concluindo alguns que ele representa o fracasso da alma; para outros, trata-se de alguém que quebrou um interdito e, desobedecendo, quis olhar o invisível.

[7] No seu permanente repensar Portugal, seguem-se, ao poema “Pátria”, “Minho” e “Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)”, os passos (alguns, conferências) seguintes: “O Doiro”, “O Porto”, “A Beira”, “Coimbra”, “O Litoral”, “A Estremadura”, “As Berlengas”, “O Ribatejo”, “Lisboa”, “O Alentejo”, “O Algarve”, “Sagres”. Raul Brandão em efígie ausente, não é? Mas, antes, o tomo I d’As Farpas ramalhianas, que Torga só olha na generalidade, enquanto «espectáculo colorido e saudável», qual «festa do colete encarnado» (Diário VII; 17-IX-1953), o que é injusto para quem, de forma sistemática, o antecipou no golpe e percorreu o país, e não só. Aquando da edição francesa, escreve Torga: «Mas Portugal é um livro de peito, é a pátria vista e decifrada pelos olhos do corpo e da alma.» (Diário XV; 23-I-1988)

[8] Ver Luiz Francisco Rebello, “O teatro na obra de Torga”, AA. VV., Para Miguel Torga, Sintra, 2001: 145-151.

[9] «Verso de pé quebrado» é o que não segue as regras da métrica ou da cesura. Quando ouvimos a expressão, incorrecta, «rima de pé quebrado», isso significa que a rima falhou. Sempre na ordem da medida do verso (e não da rima), tanto podemos imaginar, p. ex., quadras em decassílabos, mas em que o quarto verso das várias estrofes fosse, ora um heptassílabo, depois, um trissílabo, etc., como (é a solução aconselhável) o jogo entre versos silábicos, em que o mais conhecido é o decassílabo, cujo «quebrado» é o verso de seis sílabas.

[10] “O Nordeste no Diário de Miguel Torga”. Amigos de Bragança (Bragança), n.º 7, Abril de 1985: 35-39.

[11] O seu “Panorama da Literatura Portuguesa”, apresentado no Rio de Janeiro, em 17-VIII-1954, logo em Fogo Preso, em nada se vislumbra novidoso, além de convir em lugares-comuns da época; e  rasura quase todo o século XVII, todo o século XVIII, Junqueiro e outros, e raros são os do meio século novecentista.

[12] Diário I, 3-VII-1940: alusão aos «baianos de Jorge Amado»; 4-VII-1940: «a sangria desatada da carta dum filho no Brasil»; II, 3-III-1943: Gilberto Freyre; V, 8-V-1950: lembrete sobre a adolescência; XIV, 4-V-1985: «Encontro com escritores brasileiros», ou «reunião em família, pacata, cordial», na Curia; X, 20-IX-1966: vem à colação um destino semelhante ao seu; XI, 15-III-1970: rumo aos Açores, corrige, a bordo, A Criação do Mundo, «e tento seguir o herói nos seus primeiros dias de embarcadiço, a percorrer este mesmo caminho»; 15-IX-1972: sobre as «várias potestades tropicais» que conheceu no Brasil; 3-III-1973: carnaval; XII, 18-V-1973: o «bafo escaldante» de Luanda, que lembrava aquele país; 3-VI-193: na Gorongosa, tanta fauna convoca, por oposição, o «esplendor arbóreo» brasileiro; XV, 28-XII-1989: as «matas tropicais»; XVI, 23-XI-1990: Grande Sertão: Veredas; 8-VII-1992: Pêro Vaz de Caminha, «que deu a primeira notícia à Europa dum Brasil desconhecido».

[13] Versos de Olavo Bilac comparecem em A Criação do Mundo (O Quarto Dia), p. 319.

[14] Ver Calane da Silva, “Moçambique na África de Miguel Torga ou Portugal mítico ancorado numa ilha”, AA. VV., Para Miguel Torga, Sintra, Câmara Municipal, 2001: 79-86.

[15] “Miguel Torga, o ibérida”, Colóquio  Revista de Artes e Letras (Lisboa), n.º 41, Dez. de 1966: 34-36, reproduzido em Luís Forjaz Trigueiros, Lélia Parreira Duarte, Temas Portugueses e Brasileiros, Lisboa, ICALP, 1992: 565-569 [566].

[16] Fogo Preso, 1976; em Ensaios e Discursos, p. 203. Aquele título recolhe «páginas de circunstância» (p. 181), isto é, artigos de Imprensa de cariz político desde 1945, ou suprimidos pela Censura, mensagens aos eleitores e alocuções em sede partidária e socialista de 1949, 1951, 1974-1976, além da comunicação “Eça de Queirós e Coimbra” e sobre Pascoaes.

[17] Para esta paixão, ver Bernardo Borges Buarque de Hollanda, “Dos engenhos de açúcar aos campos de futebol. A crônica esportiva de José Lins do Rego”, in Sidney Chalhoub et alii, org., Histórias em Cousas Miúdas, Campinas, Editora da Unicamp, 2005: 401-431.

[18] Remetendo para nomes da adolescência autoral em “A Promessa”, de Contos da Montanha; outras referências: 2002: 85, 106, 148, 179, 285-286, 432.

[19] Oportunidade perdida em Liliana Isabel Bento Vieira, O Processo de Caracterização das Personagens Femininas em Vindima de Miguel Torga, dissert. de mestrado, Covilhã, UBI, 2006.

[20] Durante uma epidemia em Vilalva, Pedro, doente, pergunta insistentemente à mãe pela namorada, Lucinda. Esta mãe, que vê morrer marido e filhos, anima o seu agora único rebento (logo, aquele que poderá renovar a estirpe) com mentiras piedosas, que são, ao mesmo tempo, no auge do sofrimento, um incentivo ao combate pela vida, um sinal de «fé e coragem». De súbito, dobrados os sinos a finados e, enfim, no silêncio da resignação, tal a mortandade, tocam aqueles para um baptizado: é aí que a mãe Felisberta, trazendo o filho para o mundo da luz, assinala «as leiras em pouso», isto é, sem cultivo, e lhe noticia o que já adivinháramos: a morte de Lucinda. Na passagem da morte à vida, na promessa dessa criança que surge do meio da morte, há um desafio à existência, como se dá na terra que experimenta as estações e a mão do homem. Em sentido literal, renovo é rebento; em sentido figurado, é filho, geração, descendência; Torga serve-se de um provincianismo transmontano, quando designamos, ainda hoje, a horta como renovo.

[21] Francisco Cota Fagundes, org., “Sou Um Homem de Granito”: Miguel Torga e Seu Compromisso, cit., p. 167.

[22] Ser e Ler Torga [1992], Chaves, Tartaruga, 1998: 131.

Este texto resulta de conferência na sessão solene de abertura das Comemorações do Centenário do Nascimento de Miguel Torga. Auditório Paulo Quintela, Bragança, 17-I-2007; conferência em curso livre de Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras de Lisboa, 27-III-2007; conferência de encerramento do 4.º Simposium Internacional. Língua Portuguesa: Diálogo entre Culturas. Escola Portuguesa de Moçambique, Maputo, Maio de 2007; conferência no XXI Congresso da ABRAPLIP, Universidade de São Paulo, Setembro de 2007, repetida no Auditório Paulo Quintela, Bragança, em Novembro de 2007. O apartado “Torga e o Brasil” está em A Terra de Duas Línguas. Antologia de Autores Transmontanos. Coord. de Ernesto Rodrigues e Amadeu Ferreira. Bragança, Instituto Politécnico de Bragança / Associação das Universidade de Língua Portuguesa / Academia de Letras de Trás-os-Montes, 2011: 415-424.

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© Ernesto Rodrigues