“A poetisa de “Movimento” (1972), “25 Composições” e 11 Provas de Artista” (1973) e “Só de Amor” (1975), prepara, subterraneamente, propostas sociográficas singulares no nosso panorama literário.”
Por: Ernesto Rodrigues
A poetisa de Movimento (1972), 25 Composições e 11 Provas de Artista (1973) e Só de Amor (1975), prepara, subterraneamente, propostas sociográficas singulares no nosso panorama literário. Desde a sua estreia, nela detectou Fernando Guimarães[1] «uma tensão possível entre uma intensificação dramática e um acento de impessoalidade», dramatismo atenuado na «escrita neutra, cerrada em si mesmo», da prosa de A Floresta em Bremerhaven (1975), Mandei‑lhe Uma Boca (1977) e Este Verão o Emigrante Là‑Bas (1978).
Com o segundo livro, nota‑se «o isolamento cada vez maior do poema na sua linguagem, quer recorrendo a uma imaginação que dilui o carácter referencial do discurso num sem‑sentido surrealizante, quer reduzindo essa imaginação – isto é, o significado poético e metaforicamente recuperado desse sem‑sentido – pelo desvio da própria expressão que, aliás o discurso pode também propor». Se, à «erosão quase total» e ao fragmentarismo, acrescentarmos a rítmica impressionante dos 35 sonetos do terceiro livro, temos as estratégias‑base da sua ficção, em que o narrador tende a apagar‑se na apresentação brutal dos dizeres.
Quando a fala organizativa se esvai na das personagens, ou, como em Ora Esguardae (1982), é o sincrético discurso da rua e da Revolução fernão lopesinamente[2] dado, tal pode significar uma cumplicidade enorme na atribuição de voz a quem, antes, dela se vira desapossado. Trata‑se de emigrantes que podem, enfim, regressar à pátria; do povo miúdo em redemoinho linguístico; de outras margens, como a dos ladrões (Rudolfo, 1985), os dramas da juventude (Sara, 1986, a partir de diário de personagem que já vem de 1977), da droga e da prostituição (Armandina e Luciano, o Traficante de Canários, 1988).
O que se pressente, em cada novo fresco da sociedade portuguesa, é, sempre, um contar de subversão, propósito que foi título de «romance» sobre a vertigem da mudança (1990) e obriga o leitor a «compor a unidade» daquele a partir de doze contos.
Autora de algumas águas-fortes que nos definem enquanto sociedade portuguesa – a emigração, menos a juventude burguesa ou a prostituição –, saudei, em seu tempo, a terceira edição (1989) de Ora Esguardae, esse mural da Revolução, acaso o texto mais optimista, onde a cada página se faz, ou se nos impõe, o apelo à memória.
Estórias várias dentro da História recente (em especial do pós-25 de Abril até 1980), faz da Cidade um fabuloso concerto de vozes exigindo montagem fragmentada para destacar o recurso a uma série de factos literários: grafitos, panfletos, siglas, poemas, encenação dramática, etc.[3] Transformado em quase pura citação, o texto é narrador colectivo que não apaga, todavia, a furtiva «escritora».
Esta discrição (apesar de tudo) de quem enuncia chama outros heróis à boca de cena, como é próprio de uma pesquisa sociográfica já experimentada na ficção inaugural, A Floresta em Bremerhaven. Aqui, a voz de quem narra foi emprestada a quem, antes, vivera oprimido, isto é, sem fala. Mais: não é só a aquisição de uma linguagem; mas, ainda, o direito à ruptura com a sintaxe de um português padronizado. Esta inesperada liberdade assumida pelo casal de ex-emigrantes de Porto Covo, em casa de quem a narradora passa os primeiros 16 dias de Julho de 1975, ainda vive, contudo, amarrada a preconceitos políticos: o marido, p. ex., receia dizer em que partido votou. Já em Albufeira, porém (a narradora leva o casal a amigos também ex-emigrantes na Alemanha), a juventude patenteia esse esforço de um país que enfim se exime às teias da mole ditadura. Exemplarmente, esbate-se a ditadura do próprio narrador, como já se percebeu.
Outro aspecto fundamental que traz esse livro à demais prosa de Olga Gonçalves é – como relevou João David Pinto-Correia na apresentação do sétimo título de ficção da autora, Armandina e Luciano, o Traficante de Canários–, a coloquialidade, uma arte de «mimar todas as falas» que a autora remete para as brincadeiras de criança. Logo, das estruturas repetitivas ao emprego do calão – com forte componente do discurso político e suas estruturas encráticas em Ora Esguardae –, multiplicam-se os registos narrativos e vemos essas vozes faladas sob diversos ângulos. embora o alto relevo seja dado às classes mais baixas, à arraia-miúda, sob cuja óptica se nos apresentam os filhos de algo: é uma opção que faz estilhaçar a só aparente discrição de quem conta. Assim empenhada na construção linguística da Cidade, é, sempre, presença disfarçada, essa tutela divina do narrador sobre os textos.
Esta afirmação assenta, ainda, na proeminência das mulheres e sua crescente autonomia, à imagem da libertação do espaço português ultramarino, sobretudo Angola, em cujo quadro se esboça a figura autoral. Ronda por aqui Maria Archer; e Natália Nunes – plurívoca: memorialista estreada com Horas Vivas (1952), dramaturga (Cabeça de Abóbora, 1970), ensaísta literária (As Batalhas Que Nós Perdemos, 1973) e tradutora –, em cuja ficção as mulheres se revoltam contra a moral e as relações socioprofissionais castradoras. Isso desde Autobiografia de Uma Mulher Romântica, romance de 1955, a que se seguiram Regresso ao Caos (1960) e, sobretudo, Assembleia de Mulheres (1964), «curioso exercício de descrição da vida de grupo de várias mulheres num emprego público e cujo convívio suscita em cada uma reacções e atitudes peculiares, sendo comunicada através de uma técnica rigorosa que se centra no diálogo, entrecortado pela revelação dos pensamentos íntimos das personagens, dada na primeira pessoa, em estilo de monólogo implícito – problematizando assim, em termos psicológico e económico-sociais, a relação entre a frustração pessoal, as tendências compensatórias e o esquema da dissimulação». Na novela, ofereceu O Caso de Zulmira L. (1967), «efabulação de uma história clínica de neurose», e A Nuvem (1970), «reflexão lírico-evocativa sobre o rompimento de uma relação amorosa, comunicada pelo confronto de vários planos de narração». A contística vem de A Mosca Verde (1957) e Ao Menos um Hipopótamo (1967) à dúzia de As Velhas Senhoras e Outras Histórias (1992), reunindo textos de entre 1965 e 1989.
Longo e fragmentado poema narrativo, as estâncias (instâncias) desse sujeito saltitando nas falas de muitos pedem agora um olhar unificador, que as gerações mais novas (os murais pintados em Lisboa quase desapareceram) talvez não façam. Conservar-se-á o informacional; quanto ao apelo, não sei. Mas a experiência de um romanesco inovador em Ora Esguardae não oferece dúvidas.
Em Contar de Subversão (1990), a explícita indicação do género – romance – vai colidir não só com o próprio título, mas também com as doze histórias que se seguem.
Com efeito, estamos perante contos, no sentido tradicional desta forma genérica. As situações vivenciais das personagens, em ruptura com modelos da sociedade, surgem na expressão que melhor singulariza a obra de Olga Gonçalves – a oralidade –, aqui reforçada por frases sincopadas, tantas vezes falhas de verbos, que assim encrespam e suspendem uma memória cujos vazios o leitor deve completar.
Neste reino de sugestões, passeamos por vários mundos – geográficos, linguísticos, sociológicos –, como sempre foi característico na autora. Agora, há lembranças de Angola, do Portugal serrano e lisboeta e, cada vez mais, dos Estados Unidos, em citação de lugares selectos e até como local de escrita. Mas os choques culturais, visíveis nas suas obras ao nível de linguagens por que passavam a emigração, o 25 de Abril, a droga e a prostituição, estão desta feita muito esbatidos, quer pela condição das personagens (maioritariamente de profissões liberais), quer pela estilização do discurso, não raro lírico, a fazer lembrar certas qualidades do conto ou, mesmo, as primícias poéticas de Olga Gonçalves, com excelente conjunto de sonetos, Só de Amor, tanto mais eroticamente intensos quanto se libertam de rimas obrigadas.
Nesta medida, o subtítulo romance, enquanto um dos elementos paratextuais a que a crítica moderna dá a maior importância, subverte, ele próprio, um horizonte de expectativas em quadro que, explicitamente, já se diz de subversão. Se tiver por função manter o leitor alerta nessa tensão que as formas genéricas constituem, justifica-se por si, naturalmente. E talvez não se peça mais.
A ideia da autora é que o romance é caótico e ao leitor compete «compor a unidade», ou seja, «seduzir o romance para uma nova ordem», reconhecendo o rosto através das máscaras. Estas, no novo mundo de Olga Gonçalves, resumem-se a aventuras fugidias e à procura de um refúgio; aos abandonos sucedem-se felicidades passageiras; o indivíduo casa independência e angústia. O melhor dos mundos seria o novo mundo amoroso. Mas cada texto dá-nos a incompletude, dos sujeitos da acção e da forma expressiva. Eis a unidade de sentido que poderia agrupar os doze textos sob a etiqueta de romance, logo inscrita na portada. Vale a pena entrar.
[1] “A sensibilidade da imaginação (A propósito da poesia de Olga Gonçalves)”, in Jornal de Notícias, 11‑XI-1980.
[2] ‘Esguardai’ (atendei, considerai, olhai com atenção, etc.) já comparece nas Ordenações Afonsinas e retorna em Zurara.
[3] Seria preciso confrontar anti-abris, cartazes contra as maleitas da Revolução, caso de João Patrício, Pedradas a Sorrir. O Outro Abril: Epigramas Políticos (1974-1977), Lisboa, 1977.