“O português inferioriza-se, «refugiando-se numa auto-ironia perfurante, como a de Eça de Queirós, ou numa autocrítica flageladora da sua própria história, como em Oliveira Martins; ora incha o peito para desafiar o mundo ou para o conduzir»”
Por: Ernesto Rodrigues
A História da Cultura em Portugal (3 vols., 1950, 1955, 1962, edição do Jornal do Fôro) marcou um tempo no ensaísmo, já pelos fundamentos ideológicos, de forte contextualização social, já por não integrar «organicamente a análise estética», que ainda incomodava António José Saraiva em carta a Luísa Dacosta de finais de 1965, quando pensava alargar o projecto a um quarto e quinto volumes, dedicados à época barroca e ao intervalo até 1820.
No prólogo de 1981 à refundida História da Cultura em Portugal I. Teoria e História. Livro I. Introdução Geral à Cultura Portuguesa, o segundo parágrafo confessa: «A obra foi planeada como uma extensão aos temas da cultura dos métodos da história económico-social. Mas no decurso da obra fui obrigado, pela própria matéria, a desviar-me desses métodos e da doutrina que lhes está subjacente, em última análise, a doutrina marxiana das supra-estruturas.» Imperava a linguagem marxista: «O Humanismo é um movimento revisionista, antitradicionalista, nascido da crise do feudalismo europeu», etc. Os humanistas eram «uma aristocracia intelectual espalhada através da Europa, animada por um impulso revisionista, mas sem ligação com as massas e por isso mesmo sem potencial verdadeiramente revolucionário». Ou, ainda, «estão animados do individualismo característico da ideologia burguesa».
Quer isso dizer que, sem esquivar uma parcialidade de Partido, Saraiva evitara uma história socioeconómica, ou a história da civilização material (F. Braudel), enquanto se quedava aquém ou fora da criação estética, cuja singularidade é alheia às seriações, às estatísticas e às causalidades daquela. Desgosta da palavra ‘história’, e, na refundição, coloca-a em segundo lugar, após ‘teoria’. Enquanto o Livro I remete para o império da Cultura Portuguesa enfim teorizada, História da Cultura em Portugal II. Livro II. Primeira Época: A Formação (1991) supõe a vontade de um assento histórico-literário em diacronia. Deve ser acompanhado de O Crepúsculo da Idade Média em Portugal (1988). Assim refeito o originário volume I, o drama inicial − de método e alcance − foi superado, resultando magníficos volumes.
Mas Saraiva deixa-nos em 1993. Leonor Neves decidiu acrescentar outros: História da Cultura em Portugal. Vol. I. Renascimento e Contra-Reforma, 2000; Vol. II. Gil Vicente, Reflexo da Crise, 2000. Sucedendo a esta, editei Vol. III. As Navegações e as Origens da Mentalidade Científica, 2010; Vol. IV. O Humanismo em Portugal, 2013. Estes correspondem aos capítulos I (seguido do capítulo II, “Os meios e agentes”), III, IV e V do Livro Terceiro, que ocupava o primitivo vol. II de História da Cultura em Portugal (1955). Do vol. III sairão, ainda, outros volumes autónomos. Não confundir o saldo destes – já seis volumes editados – com os dois de Para a História da Cultura em Portugal (1961).
Vem Abril de 1974 e Portugal impõe-se ao Saraiva cronista que desagua em Filhos de Saturno (1980; reeditei em 2015), e mais ao docente regressado à Universidade portuguesa. Assim, entre 1977 e 1980, redige os cinco capítulos daquele Livro I, quando também Eduardo Lourenço, Manuel Antunes, Maria de Lourdes Belchior e outros repensam esta pátria: «Génese da nação portuguesa»; «A língua»; «Algumas feições persistentes da personalidade cultural portuguesa»; «As épocas da cultura portuguesa»; «A literatura tradicional do povo português».
Geografia, história e língua favoreceram um Estado-nação homogéneo e coeso (monolítico, mesmo), opondo-se à maciça Castela e à mourama. A geografia, complementando Norte e Sul, intercambiando valores, oceaniza-se. As diferenças económicas e climáticas «nunca foram bastante acentuadas para criarem pólos de poder ou de irradiação cultural» (p. 80). Têm-se sucedido, quando não coexistido, topografias centrípetas, desde Guimarães e Coimbra: Lisboa nem tudo absorve − a força das capitais é contrabalançada por outros núcleos −, sendo inquestionável a sua excelente colocação ibérica, que os Filipes desaproveitaram.
Decidida a independência em Aljubarrota, urgia sustentá-la economicamente: Ceuta fez-se, por isso, «aventura fora da Península, primeiro passo na retaguarda guerreira que constituíam as descobertas, face à ameaça turca, antes de estas serem olhadas como mercantis. Definido «um certo sentimento de isolamento, porque, entre a Europa e Portugal, Castela tem funcionado como um deserto isolador» (p. 81), discorre sobre as características dessa ‘personalidade cultural’, que resumo a seguir em 14 pontos, entre parêntesis. Quer este ponto, quer o relativo à importância de História da Cultura em Portugal, por Paulo Borges e Bernardo de Vasconcelos e Sousa, estão largamente tratados em António José Saraiva Centenário, súmula do congresso internacional organizado em Dezembro, e que o CLEPUL colocará, em breve, online.
Catorze retratos
Habita-nos, desde logo, esse (1) espírito de ilhéu, «oscilando entre a aventura fora e a passividade dentro, ou ainda vivendo a aventura pela imaginação, sem sair do mesmo lugar». O português inferioriza-se, «refugiando-se numa auto-ironia perfurante, como a de Eça de Queirós, ou numa autocrítica flageladora da sua própria história, como em Oliveira Martins; ora incha o peito para desafiar o mundo ou para o conduzir» (p. 82). Estamos perante um (2) humor entre a chacota e a auto-ironia de Zé Povinho, que, a espaços, de si mesmo se condói, na lucidez que faltava aos fidalgarrões de Seiscentos verberados por Tomé Pinheiro da Veiga, em Fastigínia (1605), obra que recusa, porém, aquela inferioridade.
Ao (3) messianismo, crente num destino providencial, associa-se o complexo da (4) saudade, por sua vez, ligado ao (5) amor «à portuguesa, que parece comprazer-se na distanciação» (p. 84). Não me parece: a distância é inelutável, traduz-se em coita – cuja enunciação pode envolver comprazimento, ou significar culto da dor, esse «gosto de ser triste» (p. 86), que perpassa no fado −, mas, ainda na morte, amor deseja-se à beira, como nos túmulos de Pedro e Inês, ou no noivado sepulcral de Soares de Passos.
A (6) obliquidade das relações transfere o tratamento binário tu / vós para um sistema ternário, «um tratamento oblíquo na terceira pessoa (usando o nome do interlocutor, o que parece ser uma maneira de evitar o frente-a-frente; ou o você de amizade)», quando não outros, acrescento: o senhor, o pai, etc. Nego, pois, que não haja equivalente a Monsieur, como Saraiva diz, para «interpelar alguém fora da sua intimidade» (p. 85). O supracitado humor agre e auto-irónico «É talvez uma forma de protesto também oblíqua, uma compensação do sentimento de inferioridade colectiva, tão frequente em Portugal» (p. 86), «subalternidade» que E. Lourenço, n’O Labirinto da Saudade (1978), situou nos 60 anos de dominação filipina.
A doce, (7) dorida religiosidade, sem a veemência castelhana, revê-se no culto de Maria em suas raízes psicanalíticas, tão presente no onomástico, e no culto dos mortos. Mas nem estes nos criam interesse pela filosofia (nem pela teologia), nem aquela religiosidade pelo misticismo: graduamo-nos em história pátria, na aguda (8) consciência nacional, limitados a uma historiografia que favorece «um contemplativismo passadista, uma procura da idade do ouro no passado – uma forma, afinal, de saudosismo» (p. 90).
O (9) aldeanismo – a aldeia na corte – é uma velha guerra contra a cidade e o aristocrático, na arte ou na escala social. Poderia significar democraticidade, mas virou ilusão; ser conúbio de estratos (popular e erudito), mas fez-se demagogia. A cantiga de amigo deslustrava o provençal; nacionalizou-se, porém, a redondilha; e, aclamados bastos poetas fáceis, a indigência cresceu, como nas letras do fado, na langue de bois partidária, no cada vez mais pobre discurso familiar. A ficção pós-camiliana ressente-se de luta surda: na falta de espaços citadinos com vida própria, recorre a modelo estrangeiro. A linguagem vê-se no fio, gasta, serva, instrumentalizada; e, pedagógico, explicador de palavras para entender as coisas, iluminando os valores do signo, Saraiva faz profilaxia etimológica, semântica e moral. É uma das especialidades do autor de Dicionário Crítico de Algumas Ideias e Palavras Correntes (1960).
Aquela estrangeirização tem implicações socioeconómicas, na (10) ausência do espírito burguês, desse burgalês ou burguês medieval com direito de cidade – de burgo, termo datável de 1123 –, um empreendedor distinto do aristocrata e do lavrador, cujo comércio o alcandorou, em Setecentos, a classe social: ao contrário dele, ora nos sacrificamos para bafejar herdeiros, ora vivemos no luxo possível e impossível, sem investir o acumulado, como se fosse pecado multiplicar o dinheiro. Não se trata de especulação, de simples numerário, aquela e este regularmente criticados pelo autor. Mercado e tecnologia (o «ferramental» do capitalismo) desembocam em número, no alegadamente ‘científico’, não forçosamente em produtividade e, menos ainda, em liberdade. Logo, onde reside o progresso, a tal ponto discordam estrangeiro e nação, se dissociam topo e base? É uma velha preocupação, recorrente em Filhos de Saturno e na correspondência.
Nesta parte, seria útil confrontar a imagem de jardim à beira-mar ‒ «reserva bucólica de uma Europa em acentuado processo de (11) urbanização de técnica e tecnicismo» ‒ com o esforço progressivo fontista, lendo Portugal como «uma espécie de aldeia orgulhosamente feliz na sua marginalidade, na sua diferença», que o salazarismo disfarçou em «dimensão imperial imaginária» (E. Lourenço, Do Colonialismo como Nosso Impensado, Gradiva, 2014, p. 303-304).
É de ordem cultural, mais do que biológica, e um facto político (se representa povoamento), a tendência para a (12) miscigenação. Saraiva vê este processo como «uma certa liberdade em relação às fronteiras culturais, uma certa promiscuidade entre o Eu e o Outro, uma certa falta de preconceitos culturais, a ausência do sentimento de superioridade que caracteriza, de modo geral, os povos de cultura ocidental». Demasiado bondoso nestas últimas palavras, é facto que, face ao mais ocidentalizado, a nossa atitude «é a de ensimesmamento, de refluxo» (p. 98) sobre nós mesmos, próprio de espírito ilhéu, que nova globalização vem derrotando. Justificado o desinvestimento comercial, quando o português de Quatrocentos tanto arriscou, parece ter-nos acontecido, após Quinhentos, um país póstumo, suficientemente apático para, no momento da escrita, ser embalado vez primeira pelo Fundo Monetário Internacional.
Poderemos, de tanta passividade e ares contemplativos, deduzir uma celebrada (13) brandura de costumes, que um Torga contesta, desde as guerras civis de Trezentos à hipocrisia de se não matar o touro na arena? Ocorre brandir a humanidade da abolição da pena de morte; os efeitos, por baixo, de algumas batalhas; e, na relatividade destas condutas, dar nota de chacinas, lá fora, que nos relegam para o fundo das tabelas. Será «uma certa aversão ao espectáculo público do assassínio, a piedade pelos mortos e supliciados, o horror do sangue», mau grado tantos autos-de-fé? Referida a «maviosidade» (p. 100) lusitana em Fernão Lopes, justificar-se-á tal, acaso, «por uma certa sensibilidade à flor da pele, ou pela falta de firmeza nos juízos sobre o próximo, ou pelo esquecimento das culpas, ou pelo baixo tónus de agressividade» (p. 101). A desorganização, o instintivo, o «logo se vê», uma brandura que é medo, fuga ou desinteresse, agem contra nós. Entrevêem-se as razões maiores para o falhanço do 25 de Abril, segundo Saraiva.
A conclusão, ou décima quarta estação desta via-sacra caracteriológica, remete para um povo não propriamente guerreiro, em valores e actos, mas, tão-só, (14) «um povo obstinado quando se trata de defender o terrunho. A padeira de Aljubarrota é, possivelmente, o melhor símbolo do espírito guerreiro português.» (p. 103) Seja esta heroína exemplo menos feliz, não é pequeno espanto a resistência ao Castelhano, que Agostinho da Silva considerava feito maior que os descobrimentos, conquistas e ultramares.
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© Ernesto Rodrigues