“A década de poesia aqui reunida oferece inesperados contributos à nossa lírica: interventiva, no sentido político; intimista e familiar, com laivos autobiográficos; cúmplice de uma topografada Lisboa fadista, mas também de cantautores lusos e estrangeiros, e de uma extensa galeria de poetas epigrafados”

Por: Ernesto Rodrigues

Ernesto Rodrigues apresentou, no dia 15 de Março, às 18,30h, na Associação 25 de Abril, em Lisboa, “As Palavras Continuam”, de Pedro Assis Coimbra, pseudónimo de Joaquim Pimpão, representante do AICEP em Budapeste. Joana Amendoeira, sobrinha do autor, cantará alguns fados. Aqui está uma primeira leitura.

A década de poesia aqui reunida oferece inesperados contributos à nossa lírica: interventiva, no sentido político; intimista e familiar, com laivos autobiográficos; cúmplice de uma topografada Lisboa fadista, mas também de cantautores lusos e estrangeiros, e de uma extensa galeria de poetas epigrafados (se não é algum mais salientado, caso de Ary dos Santos), esta soma não deixa de noticiar, ainda, uma impressiva memória grega e suas mitologias, a par de variado cosmopolitismo europeu, que se vaza para a Tailândia. Fragmentos de vida em mares menos procelosos do que em Quatrocentos e Quinhentos, eis novas peregrinações de bom lusíada.

Os processos diversificam-se, nisso residindo um dos encantos de volume longe dos formatos minguados da praça lusitana. Com excepção de um texto mais longo, a extensão das composições regulariza o olhar no domínio da quadra, e redução do verso nos mais cantantes, até à prosificação da vintena final, onde mais se alevanta o sujeito empírico, ribatejano e autor de páginas antigas, em exame de consciência política – de Fidel e Che Guevara ao Vietname napalmizado, de Estaline ao Hitler concentracionário, que me leva a evocar um inocente Radnóti Miklós no campo de Ravensbruck.

Se este apartado ideológico falta na poesia portuguesa de hoje, não espanta menos o biénio inicial (2015-2017), no insólito dos títulos faunescos ou botânicos até às conexões semânticas exigindo segunda leitura, e surrealizando o que, muitas vezes, mais semelha natureza-morta, na sintaxe sincopada, elíptica, carente de verbos, e discreta erótica a pouco e pouco explicitando-se, ao lado de uma linguagem relativa a outros comércios e economias, entre frases-feitas, provérbios e crescente rudeza vocabular não isenta de boa disposição. O velho Mediterrâneo é ainda grego, e não o assassino, de «hoje tão triste», autor e eu convergindo em que quanta mais riqueza temos, mais pobres acrescenta e sofre a humanidade. Isso é só parte do verso de “Vegetariano”, «Entre muito da vida que aprendi na Hungria», desde 1979; aprendeu mais, dele fazendo poeta de uma ritmia invejável, mas desconhecido nas margens do Tejo.

O expatriamento admite liberdades com a língua de que, em Portugal, raros se servem: o leitor intensivo de clássicos helénicos mistura lingerie e mitologia; socorre-se de uma infinidade de vocábulos alheios ao idioma, em feliz coabitação; mas também altera o género das palavras, como num notável soneto, “Hospital Szent János”: «O meu omelete na linguagem de casa / quer dizer o meu sem-abrigo privado.» Notem-se os segundos versos dos tercetos, entre o bem achado das compras e a suspensão da conversa: «Umas moedas para ele a seguir ir comprar / um dedo de pão e dois braços de aguardente / de se queimar para melhor suportar a noite. // Com brilho de gato no escuro da escuridão / o meu omelete tem uns olhos tão intensos que / mas cantigas assim só aumentam a confusão.»

Essa aventura identitária reforça-se no suave enfrentamento com o Outro, desenvolvendo-se uma miríade de histórias, que são mais dos que as de uma subjectividade, tornando-se centro-europeias, italianas, parisienses, lusíadas – peregrinantes, em suma.

Essa procedência, ou espírito dos lugares, evita soluções suburbanas e a charra prosódia de tanta poesia hoje celebrada entre nós. Ainda devedor de uma pontuação minimalista, ou inscrevendo espaço no meio do verso, por educação setentista, certo é que não encontramos agora facilidades e displicência, antes propostas engenhosas, como nos títulos da segunda secção (2012-2014), cada um figurando, já, os das trindades poemáticas. Dos parcos sonetos, salientaria, ainda, “Palavras de outono”, não só por ser um dos muitos epigrafados em francês – e seria preciso estudar a pertinência da epígrafe –, mas porque, remetendo para o título da obra, e para uma existência às palavras dada, sintetiza a diligência metaforicamente descritiva e melancólica de um Eros pretérito. Outro soneto, que me dedica, é “Domingo” (a dúzia de frequências deste dia é ultrapassada pelo sábado, donde, tempo de eleição e descanso votado à arte): no delicioso jogo de palavras, há uma história que diverte, consumando o nosso autor enquanto ironista.

Urge, assim, olhar para a cronopoesia de Pedro Assis Coimbra – que conheci como Joaquim Pimpão, no aeroporto de Frankfurt, em 9 de Setembro de 1981, e por um quinquénio sobre o Danúbio assim tratei –, com matéria e propostas que honrosamente lhe franqueiam a entrada na cidadela da lírica portuguesa.

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© Ernesto Rodrigues