“Entre os ilustres nascidos em 1867 – Raul Brandão, António Nobre, Carlos de Lemos –, Camilo Pessanha sofre de ser conhecido só como poeta, quando se completa em crónicas da alta coimbrã desde 1889, em contos e oito elegias traduzidas do chinês.”
Por: Ernesto Rodrigues
Entre os ilustres nascidos em 1867 – Raul Brandão, António Nobre, Carlos de Lemos –, Camilo Pessanha sofre de ser conhecido só como poeta, quando se completa em crónicas da alta coimbrã desde 1889, em contos e oito elegias traduzidas do chinês.
Central na revista Centauro (1916), que antecipa Clepsydra (1920), com 30 poemas, a 2.ª e 3.ª edições (1945, 1956) acrescentam 11, e, com a 4.ª ed. (1969), perfazem-se 56 composições. Bem pouco, sendo imenso… Mas Clepsydraobriga-nos a voltar à segunda metade do Oitocentos francês, em que Pessanha bebe, e a mais longa conversa sobre os então ditos Decadentes, que associo à Modernidade, e vou resumir.
Fixemos o seguinte: quando Baudelaire lamenta que os profissionais digam a sua literatura ‘decadente’, não entendem o que, por uma ‘lei misteriosa’, significa «soleil agonisant», ou “Água morrente”, que é um título de Pessanha. Abria-se a cisão entre autor / produtor e leitor / consumidor.
A figuração autoral de 1863 (com procedência setecentista) é «[…] ce solitaire doué d’une imagination active, toujours voyageant à travers le grand désert des hommes» – ‘deserto’ é imagem forte em Pessanha –, cuja finalidade vai além da do «pur flâneur» e seu «plaisir fugitif de la circonstance»:
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Il cherche ce quelque chose qu’on nous permettra d’appeler la modernité: […]. Il s’agit, pour lui, de dégager de la mode ce qu’elle peut contenir de poétique dans l’historique, de tirer l’éternel du transitoire. […] La modernité, c’est le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art, dont l’autre moitié est l’éternel et l’immuable.
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E Baudelaire acrescenta: «En un mot, pour que toute modernité soit digne de devenir antiquité, il faut que la beauté mystérieuse que la vie humaine y met involontairement en ait été extraite.»[1] Reconhece-se o valor histórico, o concreto, enquanto marca poética do presente. O “San Gabriel” pessanhiano é a nau de Vasco da Gama e o «arcanjo tutelar», ao qual se roga, num verso de notável imaginística: «Vem-nos guiar sobre a planície azul.»
Mallarmé já observara o real em «Un ciel pâle, sur le monde qui finit de décrépitude»[2], antropomorfização, estados e conceitos comuns em Pessanha: «Onde ides a correr, melancolias?» (“Paisagens de Inverno” / 2) Mais conhecido é o choro das ‘arcadas do violoncelo’ ou do ‘som da flauta’.
Na salada de nomes – maudits, déliquescents… –, ou, tão-só, La Décadence (1-X-1886), revista de René Ghil dedicada à «école symbolique et harmoniste», que Pessanha decerto conhecia, veja-se como Baju, fundando L’École Décadente (1887) em Les Fleurs du Mal, criticava a literatura «vénale, stérile et terre à terre» de Zola e do naturalismo, «qui fait les délices du bourgeois sans âme» (p. 2); nessa sociedade exangue, em que Pessanha se esforça – esforça-se pouco, seja dito – numa ataraxia sucinta, será bandeira a «universalisation du Beau» (p. 3), segundo programa assim adaptado: reflectir a imagem deste mundo spleenático; nada de descrições, ou tão-só uma súmula rápida dando a impressão dos objectos. Não pintar, fazer sentir; dar a sensação das coisas, seja por construções novas, seja por símbolos evocando a ideia, com uso mais intenso da comparação. Sintetizar a matéria, mas analisar o coração. Poética resumida em Mallarmé: «Peindre non la chose, mais l’effet qu’elle produit.»[3] Conjugando-nos com o onírico freudiano (1900 [1899]), desembocamos em tópicos da Modernidade: vago, fluidez, aleatório, fragmentação, recorrências, instabilidade, ansiedade e auto-reflexividade. Pensamos em Raul Brandão; porque não em Pessanha?
Quando “tout décade”, tudo decai, Baju propõe que se escreva com delicadeza (marca de instabilidade), elevação (sinal de artifício) e o refinamento de olhar parcial (fragmentação) que gere particular estilo. Do Brandão da pintura passamos ao Pessanha da música, sob a égide de Mallarmé, que, em L’Echo de Paris (1891), assinalava «une infinité de mélodies brisées qui enrichissent le tissu sans qu’on sente la cadence aussi fortemente marquée». Não busca cisão entre parnasianos, «amoureux du vers très strict, beau par lui-même», e os novos, que «ne tendent pas à supprimer le grand vers; ils tendent à mettre plus d’air dans le poème, à créer une sorte de fluidité, de mobilité entre les vers de grand jet, qui leur manquait un peu jusqu’ici». As conquistas musicais na transição do século, do impressionismo ao dodecafonismo, dos blues ao jazz, revêem-se neste processo. Procura congraçar as duas gerações:
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[…] car, si, d’un côté, les Parnassiens ont été, en effet, les absolus serviteurs du vers, y sacrifiant jusqu’à leurs personnalité, les jeunes gens ont tiré directement leurs instinct des musiques, comme s’il n’y avait rien eu auparavant; mais ils ne font qu’espacer le raidissement, la constriction parnassienne, et, selon moi, les deux efforts peuvent se compléter.
[…] les Parnassiens, eux, prennent la chose entièrement et la montrent; par là ils manquent de mystère; ils ‘retirent’ aux esprits cette joie délicieuse de croire qu’ils créent. Nommer un objet, c’est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème qui est faite du bonheur de deviner peu à peu; le suggérer, voilà le rêve. C’est le parfait usage de ce mystère qui constitue le symbole: évoquer petit à petit un objet pour montrer un état d’âme, ou, inversement, choisir un objet et en dégager un état d’âme, par une série de déchiffrements. […] Il doit y avoir toujours énigme en poésie, et c’est le but de la littérature, – il n’y en a pas d’autres, – d’évoquer les objets.
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Mestre de Pessanha, Verlaine «a réagi contre l’impeccabilité et l’impassibilité parnassiennes; il a apporté, dans Sagesse [1881], son vers fluide, avec, déjà, des dissonances voulues»[4].
Subterraneamente, corre Pessanha. Alma ‘lânguida’, inerme’, ´doente’, antecipa «saudades do presente», enquanto Nobre era saudoso de idos felizes. Fá-lo no elogio da dor, sem a qual o coração «é quase nada», ou «esta falta d’harmonia» que nos irmana a outrem, embora o sujeito se prefira ‘sòzinho’, ‘só’, no seu “Caminho” – movimento de alma diverso de Nobre, a isso forçado (ao menos, em regime de autoficção). Em “Ao longe os barcos de flores”, temos um resumo, na imagem da flauta-sujeito: «Quem sabe a dor que sem razão deplora?» Mais: o diálogo de Pessanha é com o próprio corpo-cadáver, transitórios que somos, também particularizado em «olhos febris», e coração «desatinado», ou «olhar cansado» e «coração vazio» (“Paisagens de Inverno” / I, II), «meus olhos apagados» (“«Água morrente»”), «meus passos», um reiterado «meu coração» (locução muito presente no Pessoa ortónimo), em quadro lexemático de degenerescência, adverbial e em cúmulo de adjectivos, com supressão de ligações verbais, em que nem estruturas repetidas e versos em vaivém compensam as «dissonances voulues» do processo.
Caso extremo é “Fonógrafo” (marca civilizacional por excelência no fim do século), e um pouco, por razões diferentes, o aliterante “Violoncelo”, que nos pedem irmos além do aspecto musical, entrevisto por Oliveira Martins nas polémicas de 90[5]. Mas o assonantismo parece-me menos relevante que jogos de harmonia inspirados no branco ou vazio de “Un coup de dés”, em quebras do olhar sobre vocábulo imperialmente colocado, no deslizar do ditongo-rima au / numéro. Com Mallarmé, Ravel, Debussy, nascem os silêncios da música contemporânea, que, em Pessanha, são nexos a-causais, aleatórios, num vazio ou silêncio branco sintáctico-semântico. Sem ser cor exclusiva, antes ausência de cor, o branco rege a vida: a «inútil dor humana» é branca, um «Branco deserto imenso», segundo “Branco e vermelho”, singular na lírica portuguesa pela rima AAABCCCB, sendo A e C, maioritariamente, o mesmo vocábulo. Dor e solidão, nas marcas do deserto.
Não falta o precioso, desde os diminutivos ao botânico (e de rima problemática: hidrângeas / lájeas) rebuscado e popular: silindras vs. ortigas e olmos, por exemplo, numa florescência sensual apoiada em formas aristocráticas, que pululam, e também participam do desígnio acústico: lactescendo, broquel, besantes, «Timonando uma concha alvinitente!», glaucos, «imo da folhagem», aljôfar, silfo, aglutinoso, silente, delíquios, liquescência, ptomaínas, putrescina, cadaverina, simum, flébil, parlenda, hemoptise, vesânias… A épica é mais discreta que em Nobre (“San Gabriel”, “Castelo de Óbidos”), a desilusão e dúvida mais vívidas, numa questionação sobre o quem poluidor do seu destino («Floriram por engano as rosas bravas» e «Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,»), ainda duvidoso, em regime de “Interrogação”, quando, in fine (no caso de Nobre, in limine), se perfila o amor, cuja quinta e última quadra reza:
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Eu não sei se é amor. Será talvez começo…
Eu não sei que mudança a minha alma pressente…
Amor não sei se é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.
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Pessanha e Nobre comungam de palavras-frases – síncopes fortes – e ponto final; de toadilhas ou ladainhas; de uma sedução aquosa – “«Água morrente»” em Pessanha, e um mar mais discreto do que em Nobre, só ultrapassado por Raul Brandão. Resta o desejo último de Pessanha, inerme, rimando com o verme silencioso de “Inscrição”, em procurada ataraxia que debele a dor inicial:
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Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver…
Passarem sobre mim
E nada me doer!
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[1] Baudelaire, “IV / La Modernité”, Le Peintre de la Vie Moderne, em Œuvres Complètes, Paris, Robert Laffont, coll. Bouquins, 1980: 797-798.
[2] “Le Phénomène futur”, La République des Lettres, 20-XII-1875, cit. em Poésies, Paris, Livre de Poche, 1977: 97.
[3] Em carta a Henri Cazalis, Outubro de 1864, a propósito de “Hérodiade / II. Scène”, que saíra em Le Parnasse Contemporain, 2e série, 1871. Ver Poésies, 1977: 322.
[4] Ed. cit.: 263-266. Confirma-se este conjunto de citações em Stéphane Mallarmé, Poesia e Prosa [bilingue], a cura di Cosimo Ortesta, Milano, Guanda 1982: 478, 480, 482, com a diferença de ‘poëme’, em vez de ‘poème’. Jorge Luis Borges, em Discusión (1932; Prosa Completa (1930-1975) – Volumen 1, Buenos Aires, 1979; sigo Bruguera, 1985, p. 169), traduz excerto desta citação: «Nombrar un objeto, dicen que dijo Mallarmé, es suprimir las tres cuartas partes del goce del poema, que reside en la felicidad de ir adivinando: el sueño es sugerirlo.» Acrescentando: «Niego que el escrupuloso poeta haya redactado esa numérica frivolidade de las três cuartas partes, […].»
[5] “A poesia”, O Português, 19-VI-1891.
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© Ernesto Rodrigues