“Creio que este «citadino, lisboeta», como se confessava no longínquo sábado de 1974, está bem servido de leitores e crítica, mas ainda disperso na actividade jornalística. Em ano de vigésimo aniversário do seu passamento, esta vem sendo trabalhada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É um bom desafio para jovens investigadores – afinal, sobre alguém que fundava cada passo ficcional na certeza dos factos. A incerteza da criação vinha depois.”
Por: Ernesto Rodrigues
Num sábado de Abril de 1974, no dia 6, inaugurava José Cardoso Pires o “Auto-Retrato” do jornal Sempre Fixe – como iria inaugurar o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, com Balada da Praia dos Cães (1982), levado ao cinema por José Fonseca e Costa (1986). Longo «autógrafo» oferecido aos leitores, é depoimento actualizado em artigos, entrevistas ou biografias e fotobiografias posteriores, cujo rastreio não foi ainda completamente realizado. Conhecemos, assim, capítulos de uma vida que Isabel Risques[1], a propósito de mais um prémio, o da União Latina, dividiria em nove partes: aparência, origens, carácter, modo de vida, família, ambições, métodos, desejos, modelos. Por mim, vi-o sempre como personagem tisnada – «grisalho», diria ele – saída de Hemingway ou Melville, predecessores que o deslumbravam, e, como princípio, «irracionalmente exigente» (palavras suas) com a escrita, única ambição, «até que as mãos lhe doam».
Na fase de aprendizagem, que é a do contista, reunido de vez em Jogos de Azar (1963), gosta de salientar Anton Tchekhov e Edgar Allan Poe. Vem, dessa relação com forma genérica breve, dupla exigência, extensível à arte de José Cardoso Pires: cortar, cortar sempre (o que o transforma num escritor lento, mesmo «bissexto»), pois «apagar é uma busca confiante», confessou, noutra oportunidade[2]; e, ao invés de tradição nacional, optou por substantivar-se, com atenção duvidosa ao adjectivo, que detestava – di-lo em entrevista[3], um dia depois de vencido o Prémio Pessoa e a meses de nos deixar –, porque, desse modo, o leitor não fica refém de qualificativos autorais, logo, assiste-lhe mais liberdade para «criar».
Esta atitude tem ainda maiores implicações pedagógicas, se for acompanhada de um processo, linear e cinematográfico, de sintaxe estruturada em sujeito, predicado, complementos, como assinalei no verbete que subscrevo, com Jacinto do Prado Coelho, no Dicionário de Literatura – Actualização[4], em que dou a principal bibliografia activa e passiva até 2002.
Servindo-se, por conseguinte, de meios elementares que interessam à educação da boa prosa, ou a aulas de escrita, esta, segundo o autor, que igualmente se inspira na pintura, deve «criar um novo olhar, provocar um olhar diferente», «dar o tecido das relações que estão por detrás das coisas»[5]. Motivam-no, entretanto, valores decisivos, ao escrever ficção (e, acrescentaríamos, inúmeros pareceres críticos e cronística, fábulas e outros textos do homem de Imprensa, que, da revista Eva ao Jornal do Fundão, do Diário de Lisboa ao JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias e O Jornal, estão a pedir balanço circunstanciado e antologia), valores que a pena de O Delfim (1968; também em filme, por Fernando Lopes, 2002) enumerou triplamente: «busca de identidade comigo próprio, com a língua, com o país»[6].
Na relação com a língua, «coisa corrompível»[7], que o escritor, genericamente entendido, «ama mais do que ninguém», importa que se reinvente, ou corrompa a mesma língua, «para a criar». Note-se como este verbo – criar – é condição de autor e leitor. Na relação com o país, não poderá o escritor, enquanto «indivíduo com uma posição de utopia», «estar com o poder», cujos erros se impõe corrigir. Da guerra colonial ao retrato do ditador, dos comportamentos marialvas às contradições da oposição política salazarista, ou seja, o complexo ideológico que o amigo Fernando Assis Pacheco chamaria, ao bookcionarizar um delirante Alexandra Alpha (1987), «o fascismo nacional com todos»[8], tudo isso concorreu, em Cardoso Pires, e desde a estreia (1949, e não 1946, como gralhdo no citado verbete), para uma literatura de assunto português, que as traduções universalizaram. Caberia, aqui, fora de qualquer tentação de romance histórico, aprofundar as relações entre facto e ficção. Mas não deixaremos de lembrar como dizia escrever «sempre com prazer, nunca sem prazer, o que não quer dizer que escreva contente»[9].
Feita brevíssima introdução, ou receituário autoral, fecho com três memórias.
No ano lectivo de 1975-1976, abrindo-se a Universidade aos que, como eu, haviam terminado o liceu no glorioso 25 de Abril (e tinham estado parados um ano), inaugurámos a disciplina de Introdução aos Estudos Literários, na Faculdade de Letras de Lisboa, com a análise estruturalista e miúda de “Uma simples flor nos teus cabelos claros”, uma «das três ou quatro das mais bem escritas short-stories do nosso pós-guerra», como referiu Assis Pacheco, ao recensear a 5.ª edição de Jogos de Azar (1985)[10]. É a minha pequena dívida intelectual, que a Universidade deve manter viva – ou escola com nome de tal patrono –, estudando, regularmente, um clássico que desejamos vivo.
Mas tenho, entre demonstrações de apreço, segunda memória e dívida de afecto para com o oficial admirador de Mestre Aquilino, de Redol ou Régio, de Carlos de Oliveira e Maria Velho da Costa, de Lobo Antunes ou Tabucchi, e generoso com os do ofício, na presença com que honrou a minha estreia romanesca, em 15 de Fevereiro de 1989, no Hotel Tivoli, pela mão das Publicações D. Quixote, de que ele era figura tutelar. Essa graça deveu-se a parecer favorável de João Rodrigues.
Nesse círculo amigo fora eu introduzido em 1988, à mesa de bons restaurantes, onde aconteciam lançamentos para raros apenas. Importa, assim, sublinhar, em Dezembro, a apresentação de A República dos Corvos, que lhe suscitou esta máxima: «O escrever é uma coisa que vai no corpo da pessoa e se prolonga sucessivamente na memória.»[11] Fez o elogio da vírgula que se corrige e do estilo que, em quem o tem, não se vê.
Este livro traz animais bem-falantes, entre eles, um Dinossauro Excelentíssimo. Em “Os passos perdidos (Informe sobre um congresso)”, Portugal está representado por Mestre Feliciano de Castilho, e, como este ilustre cego, os demais académicos, também fechados à luz do dia, são conduzidos por inestimáveis cães… cegos. Saliento, dos sete títulos, o que também está na capa, deliciosa charge ao natural corvo Vicente, no qual almas caridosas leiam talvez outro Vicente bebendo no Mondego…
Creio que este «citadino, lisboeta», como se confessava no longínquo sábado de 1974, está bem servido de leitores e crítica, mas ainda disperso na actividade jornalística. Em ano de vigésimo aniversário do seu passamento, esta vem sendo trabalhada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É um bom desafio para jovens investigadores – afinal, sobre alguém que fundava cada passo ficcional na certeza dos factos. A incerteza da criação vinha depois.
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© Ernesto Rodrigues
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[1] O Jornal, 15-XI-1991.
[2] Semanário, 10-XII-1988.
[3] Público, 13-XII-1997.
[4] Vol. 3, Porto, Figueirinhas, 2003.
[5] Semanário, 10-XII-1988.
[6] Público, 13-XII-1997.
[7] Diário de Lisboa, 22-XI-1990.
[8] O Jornal, 18-XII-1987.
[9] O Ponto, 12-II-1981.
[10] O Jornal, 13-VII-1985.
[11] Tempo, 15-XII-1988.